terça-feira, setembro 06, 2005

Pobres Ricos

Chegou em casa 6:30 h, como fazia sempre. Encontrou a TV ligada, a mulher na cozinha, cortando os legumes para o jantar. Tudo pareceria normal, não fosse a cara de Osvaldo. Uma cara estranha, indefinida, horrorizada, esquisita mesmo.

- Que cara é essa?
- Aconteceu.
- Aconteceu o quê? – perguntou Bete, sua esposa há mais de 20 anos. Nunca tinha visto o Osvaldo daquele jeito.
- Aconteceu o pior.
- Que pior? Fala logo, não me deixa nervosa.
- Ganhei na loto.

A mulher quase arrancou um pedaço do dedo com a faca que cortava a batata. O Osvaldo gostava da batata cortada em quadradinhos que só a Bete sabia fazer. O quadrado de batata que ela cortava quando ouviu a notícia acabou ficando torto.

- Mentira.
- Juro. Olha aqui – Tirou do bolso o bilhete e o recorte de jornal com os números sorteados. Tinha a cabeça baixa, os olhos marejados, como um menino que mostra a mãe um boletim com notas vermelhas. Ainda acrescentou, num rasgo de coragem: Ganhei sozinho.
- Não, não acredito, não pode ser, é muita desgraça! – Bete começou a esfaquear as batatas.
- Eu sei, querida, também estou desesperado!

Os dois se abraçaram. Bete largou a faca com medo de fazer uma besteira. Começaram a chorar. Bete era mais escandolosa. Gritava de vez em quando.

- Que destino! Que droga de destino! A vida é uma tragédia!

Osvaldo tentou se controlar. Era o homem da casa. Não podia se deixar levar pela dor da mesma maneira que a mulher.

- Calma, Bete, a gente dá um jeito. Só a morte não tem solução.
- Mas, Osvaldo, por que você foi fazer isso? Por que foi jogar? Não sabia que isso podia acontecer? É como uma roleta russa! Um dia acontece. E agora?
- Bom, agora temos 15 milhões de reais.
- Não fala, não quero saber, estou tão triste!
- Eu também, vim para casa pensando. Nunca mais vou ver o pessoal do escritório. Nunca mais vou almoçar no pf da Dona Arminda com eles, nunca mais vou comprar cd pirata no camelô. Nunca mais vou comer batatas quadradas nem ouvir o jogo do flamengo no radinho.

Bete não estava ouvindo, estava envolta em seus próprios problemas.

- Nunca mais vou fazer a unha com a Su. Nunca mais vou poder vender os doces que eu aprendo a fazer na tv, vou perder o final da novela das oito. Nunca mais vou cortar esses legumes. Não vou mais comprar panos de prato na feira. Acabaram as fofocas com a Odete. Não vou mais encontrar uma amiga no ônibus. – Esse último pensamento a horrorizou – Nunca mais vou andar de ônibus! Vou ter ficar num táxi, um motorista me olhando pelo retrovisor, pensando em aonde eu estou indo, o que vou fazer lá, pode ser um assassino, um estrupador, ai meu Deus, já estou saudades dos pivetes do ônibus....
- Calma, amor, tudo vai se resolver, a gente compra um carro.
- Carro? Dirigir nessa cidade louca? Estacionar? E os radares? E as blitzs? E o IPVA? E os assaltos? E os sequestros? Não quero nem pensar...
- A gente contrata um motorista de confiança...
- De confiança? Ficou louco? E rico lá confia em alguém? Você acha que alguém ainda vai querer ser nosso amigo? Um casal de milionários? Todos só vão querer nosso dinheiro, vão puxar nosso saco, ficar nos ligando toda hora, vão nos pedir coisas, viagens, roupas, entrevistas, vão propor negócios para gente. Ninguém vai querer falar de nada com a gente, só de dinheiro. Só dinheiro. Até os nossos filhos, Osvaldo, até eles, é capaz de eles quererem que a gente morra para poder ficar com o nosso dinheiro.
- E se a gente desse tudo para eles logo?
- Logo como? A Maíra tem 12 anos e o Juninho, 16. E para quê distribuir essa desgraça?
- Tem razão, quero o melhor para eles.
- Por que você foi jogar?
- O pessoal do escritório fez um bolão.
- Bolão? Que diabo é isso?
- Todo mundo se junta e joga, se ganhar o prêmio é dividido.
- Mas você disse que ganhou sozinho.
- Pois é, fui cair na besteira de dizer que não queria participar, aí eles ficaram debochando e, você sabe, para não ser motivo de chacota, joguei depois, sozinho.
- É muito azar, Osvaldo, muito azar. – Bete não se conformava.
- Só de pensar amor, já estou com saudades da minha pelada de sexta-feira, nunca mais vou tomar uma cerveja em paz no bar do arnaldo, nunca mais vou comer aquele churrasco na laje, na casa da marilene e do gilberto. Não sei o que fazer.

Vendo o desamparo de Osvaldo, Bete resolveu botar a cabeça para funcionar enquanto cortava as batatas, os últimos quadradinhos de batatas da sua vida. Teve uma idéia.

- Já sei, Osvaldo. Acabou o problema. Já sei. Vamos doar tudo para instituições de caridade. Pra gente, é muito. Mas se a gente dividir vai dar um pouquinho para cada um... Ninguém precisa saber. A gente pede para não divulgarem nossos nomes. Se alguém desconfiar, a gente nega. É só dizer “Imagina, cê acha que se eu tivesse ganhado na loto, ia tá aqui, nesse buzão?” E aí a gente vai dando o dinheiro aos poucos, 5 mil ou 10 mil pra cada instituição. Você vai ver, a gente vai conseguir.


Pela primeira vez, desde que tinha recebido aquela terrível notícia, Osvaldo sorriu. Que mulher ele tinha! Ainda bem que era pobre quando a conheceu, senão, já viu, o que tem de interesseira por aí. Ela tinha razão, claro. Que idéia! Sentiu fome só de pensar nas batatas quadradas.

Deu um beijo na bochecha da mulher e falou.

- Você é a minha salvação! Claro, a solução é essa. Agora vamos jantar, que eu chego do trabalho morto de fome. E vai sempre assim, meu amor, sempre!

Mas esse jantar acabou não sendo um jantar normal. Para comemorar a solução da mulher, Osvaldo resolveu abrir uma garrafa de sidra, que tinham ganhado em um natal de um ano já esquecido. Estava quente. Eles decidiram colocar gelo. Sabe que ficou gostoso? A mulher, ao provar, saiu correndo para cozinha, e trocou os copo por duas taças, usada só em festas. Ao longo do jantar, foram se descontraindo, efeito da sidra, das taças, do dinheiro.

- Ainda bem que as crianças foram dormir fora hoje – disse Bete, maliciosa.
- É, pelo menos não precisaram participar dessa tragédia – Osvaldo não tinha percebido as intenções da mulher até vê-la pegar uma pedra de gelo da sidra e começar a esfregar pelo pescoço e em direção ao decote da camisola.
- Estou quente – justificou.

Há muito tempo, Osvaldo não via a mulher com aqueles trejeitos. Virou seu copo de sidra num gole só e deu-lhe um beijo que o fez lembrar dos tempos de namoro. Ela riu. Um riso diferente. Não parecia mais aquela mulher que cortava batatas quadradas. Ele mordeu o pescoço dela. Também estava diferente. Agressivo. Um homem de decisões. Ela se deixou cair nos braços dele. Ele a levantou no colo. Foram assim em direção ao quarto. Antes de caírem na cama, ela disse:

- Amor, quanto custa um cruzeiro de transatlântico?
- Não sei. – ele tentava pensar enquanto equilibrava o já não tão leve corpo da mulher que amava.
- A gente podia fazer unzinho, pelo mundo, você sabe, antes de doar tudo pros pobres, é tanto dinheiro, nem vai fazer diferença.

Osvaldo jogou a em cima dos lençóis arrumados e a beijou com força, como nunca fizera antes. Que idéia! Que idéia! Embarcar num cruzeiro pelo mundo e ainda continuar comendo batata quadrada a vida inteira. Lembrou dos anúncios de cruzeiro que já tinha visto. Piscinas, salões de festa, mar azul. Uma viagem só não ia fazer mal. Sua mulher era o máximo! Antes de tirar a roupa, alisou o bilhete no bolso com alegria.


Gisela Cesario