Friday, April 28, 2006

A padaria do passado

- O engraçado foi que, no momento em que entrei na padaria pensei em como ela tinha mudado desde que eu conhecia, quer dizer, não foi bem no momento em que entrei, foi quando estava dobrando a esquina, eu vinha andando e pensando “puxa, essa padaria era tão diferente antigamente.
- E o que isso tem de mais? – perguntou César, Dr. César, o psiquiatra o que há anos tratava de Alberto, infelizmente, segundo o próprio paciente, sem muito progresso. A sessão de hoje estava apenas começando.
- Nada, tudo estaria normalíssimo não fosse o que eu vi quando entrei na padaria?
- Um parente?
- Não
- Um amigo esquecido?
- Não, eu posso falar ou você vai querer adivinhar?
- Fale – Dr. César nunca perdia a paciência com um paciente, mas o Alberto era diferente.
- Eu simplesmente vi a padaria do passado.
- Como assim?
- Dr. César, César, posso te chamar de César?
- Me chame do que quiser, como assim a padaria do passado?
- A padaria estava igualzinha a como era antigamente, não estava mais modernizada, não ocupava mais o quarteirão inteiro, não tinha mais computador, tinha aquela caixa registradora, lembra?
- Você demorou a voltar ao normal?
- Eu não mudei nada, quem voltou ao passado foi a padaria, está tudo lá, os mesmo atendentes, o mesmo cara no caixa, o mesmo pão de queijo quentinho, não lembra não?
- Peraí, você está falando da padaria daqui desse bairro, aquela grande da esquina que começou com uma portinha?
- Essa mesmo, ela voltou a ser uma portinha, olha aqui a prova. – Alberto remexeu a mochila que sempre carregava e tirou um saquinho de papel onde se lia “feito com amor”, o papel estava manchado de umidade por carregar algo quente, o pão de queijo.
- Não pode ser – César seguro o saquinho branco com coraçõezinhos vermelhos como se estivesse segurando um pergaminho escrito em aramaico. – Onde você conseguiu isso?
- Na padaria, cara, quer dizer, Dr. César, experimenta um pãozinho.

Completamente aterrado, o médico começou a abrir o saquinho com o cuidado de quem abre um baú antigo cheio de jóias perdidas num naufrágio. Ao sentir a fumaça quente que saía dos pãezinhos, começou a salivar antecipando o sabor do passado. Num impulso, colocou dois na boca.

- Meu Deus, que delícia, que hum...da..humm..de.
- Quê?
- Que saudade, esse pão de queijo era uma delícia – Enquanto falava, ia enfiando a mão no saquinho pra pegar mais. – Humm...

Alberto segurou o braço do médico com força, como alguém que chama um hipnotizado à realidade.

- Doutor, o senhor não compreende? Isso é uma prova que a padaria voltou no tempo.

Dr. César largou o saquinho, percebendo o absurdo da situação.

- Ora, Alberto, o pão de queijo não foi exterminado do universo, você pode muito bem ter comprado isso em outro lugar.
- Que lugar teria esse saquinho?
- Você pode ter guardado o saquinho daquele tempo.
- Dr. César, maluquice tem limite, eu não conheço seus outros pacientes mas eu não ia passar 15 anos guardando um saco de pão de queijo. EU NÃO SOU LOUCO! EU NÃO SOU LOUCO!
- Fala baixo, você esqueceu que tem gente na sala de espera! E me dá aqui esse pãozinho pra eu examinar.

Alberto fechou o saco com um gesto brusco e anunciou.

- Nem mais um pãozinho enquanto o senhor não admitir que eu tenho razão, a padaria voltou mesmo no tempo.
- Alberto, me perdoe mas eu não posso concordar com um absurdo desses, eu sou médico.
- Pois eu estou dizendo, Doutor, na hora em que entrei achei que estivesse maluco, pensei até que estivesse na esquina errada, saí e olhei a placa na rua, estava tudo certo, entrei de novo e estava lá, a padaria do passado, com tudo igualzinho, também achei que era impossível, pensei até que estivesse sonhando, comprei pão de queijo só pra ter certeza que era realidade, comi um saco inteiro até acreditar, depois comprei outro pro senhor.
- E mesmo sendo pra mim, você não me deixa pegar mais um?
- Doutor, pelo amor de Deus, isso é uma prova científica, é um marco na história da humanidade, é o elo perdido, não é um lanchinho.
- Sei...- Dr. César olhava o saquinho desconsolado – Mas é que está tão quentinho...

Ainda tentado fazer o médico sair do transe, Alberto levantou abruptamente e foi andando em direção à porta.

- Vamos lá agora, vamos ver quem é o maluco.
- Alberto, não posso sair agora, estou atendendo.
- O senhor está me atendendo, use a minha hora pra ir comigo até a esquina e comprovar o que estou dizendo.
- Você acha realmente que nós vamos andar até a esquina e encontrar a padaria antiga lá? Sabe, não posso incentivar esse devaneio, além do mais o choque pode ser tão grande que você pode ter uma reação paranóica, pode precisar de um medicamento...
- Dr. César – interrompeu o paciente- se o senhor vier comigo e a padaria não estiver lá do jeito que estou dizendo, se o que estiver lá for aquele treco moderno e gigantesco, se o senhor tiver razão, esse saco de pão de queijo é seu.
- Ora...- César olhou o saco e decidiu – Você já tem bastante tempo de tratamento, acho que já pode enfrentar certas coisas.

Saíram andando decididos do consultório sob o olhar intrigado da secretária. No elevador, Alberto remexia o saquinho tentando provocar o médico. Pouco antes de dobrarem a esquina, Dr. César parou.

- Alberto, vamos parar, acabou. Me dá esse saco aqui, agora você já sabe o que vai acontecer, a gente vai dobrar a esquina e não vai ver o passado.

Alberto fez um ar de descaso e continuou andando, ia ouvindo os protestos do médico e seus passos arrastados atrás dele até a chegada fatídica.

- Não é possível – Dr. César tirou os óculos, limpou no jaleco, colocou de novo, tirou novamente, limpou com mais força, colocou outra vez e já ia tirar mais uma vez quando Alberto o interrompeu, com uma voz suave, como se fala com uma criança que vai para o primeiro dia de aula.
- Calma, Doutor, calma, está tudo bem. Seus óculos estão perfeitos. É isso mesmo a padaria voltou no tempo.
- Mas..mas...mas... – o médico não conseguia formular uma frase, aquilo era um absurdo total, completo e real, um absurdo real, bem na sua frente se materializava a mesma padaria onde ele tinha passado sua juventude, quantos cafezinhos ele tomara esperando passar a Jussara, aquela da sua turma que..- Alberto o tocou de leve, despertando-o do devaneio e sugeriu.
- Vem, vamos entrar.

Subiram o degrau vagarosa e respeitosamente, como quem entra numa igreja ou num templo sagrado, era como se a padaria pudesse subitamente desaparecer da mesma forma como havia aparecido. Aos poucos, os dois começaram a sorrir, olhavam as tortas girando na vitrine, o dono da padaria, seu Joaquim, já falecido há tanto tempo, dando ordens tranqüilamente e enxugando as mãos gordas no seu pano de prato bordado, esbarravam em fregueses antigos, que não moravam mais no bairro, Dona Lúcia, hoje uma senhora gorda com 5 filhos, estava lá de shortinho, fazendo os rapazes, de 20 anos como ela, suspirarem. De repente, diretamente do forno do tempo, vem saindo uma bandeja sendo trazida pelo próprio Seu Joaquim, cheia dos pães de queijo mais deliciosos de toda a eternidade. Alberto tinha lágrimas nos olhos. O passado que levou sua infância, seus melhores amigos, seus sonhos, sua energia, estava ali, só por um momento, naquela esquina. Olhou para o médico e viu que ele também estava emocionado. Murmurou:

- E agora Doutor?
- Hã? – Dr. César parecia e sentia em outro mundo.
- E agora Doutor? Está vendo, é verdade, eu não estou louco, o tempo voltou mesmo, só aqui, mas voltou. O que vamos fazer?
- O que? Mas que pergunta! Vamos comprar 200 gramas, ou melhor, 500 gramas, vamos logo que eu estou louco de saudade desse pão de queijo.

Gisela Cesario.