Friday, January 19, 2007

A lenda do tatu

Na avenida mais movimentada do centro da cidade, hora do almoço, Estevão almadiçoa o calor que lhe castiga e a falta de dinheiro que o obrigou a aceitar esse emprego de promotor de crédito. Sua função como promotor de crédito são abordar pessoas na rua e oferecer-lhes as maravilhas do empréstimo com desconto em folha do banco Tatu.

Na camisa de Estevão, uma família de tatus sorri e faz sinal de positivo com os polegares em frente a uma casa oval com jardim e um carro arredondado na porta. Tudo muito real se os tatus tivessem polegares. Era melhor ficar divagando sobre isso do que pensar nos milhares de desaforos que ele ouvia a cada vez em que perguntava:

- Posso falar com o senhor um segundo?
- Minha senhora, um segundinho?
- Meu senhor, o senhor vai gostar do que eu tenho pra dizer..

Os outros promotores de crédito do banco Tatu já estavam acostumados e lhe diziam que era assim mesmo, ninguém parava, ninguém estava interessado nas vantagens desse empréstimo, mas era bom ele estar preparado, com todo treinamento na ponta da língua porque dizem que ouviram de alguém que um dia... Era uma história tremenda que todos gostavam de se reunir pra contar. Aconteceu o seguinte com um promotor de crédito do Tatu. Ele estava na esquina, muito desacreditado da vida, digamos que seu nome fosse João, então, o João estava lá, achando que ia ser mais um dia igual aos outros quando, ao estender o panfleto do banco Tatu e falar a célebre “Posso falar com o senhor um segundo?”, ocorreu a coisa mais estapafúrdia.

Nessa hora da história, todos os promotores fazem um ar amendrotado se imaginando na pele do pobre João. Pois aconteceu com o João do cara que ia passando parar. E então o suspense fica tão grande que quem ouve a história mal respira. Pois o cara parou mesmo. E ainda disse: “Pode sim”. O pobre do João não sabia se gaguejava ou fingia que era mudo, o diálogo foi mais ou menos assim.

- Posso mesmo?
- Pode, vai ser rápido?
- Ah? Rápido? É, acho que sim.
- Pois bem.
- Então.
- O que o senhor quer dizer?
- Eu?
- É, eu vinha passando, o senhor mandou parar para um segundo de conversa, parei e aí?
- Aí que não sei.
- Como assim não sabe? Está vendendo alguma coisa?
- Não, quer dizer acho que não, sou promotor de crédito.
- E não sabe o que faz?
- Até hoje só o que fiz foi fazer essa primeira pergunta, mas nunca, jamais, em tempo algum alguém se deu ao trabalho de parar pra responder. Não esperava por essa, estou abobado.
- Abobado estou eu, francamente, o senhor acha que eu não tenho mais o que fazer?
- Moço, desculpe, é que eu pensei que o senhor ia me mandar pro inferno e continuar andando, não sei o que fazer agora que o senhor parou.
- O que é isso na sua mão?
- Isso?
- É, é um panfleto não é? Deve ser isso que o senhor está vendendo.

Dizem que nessa hora João olhou surpreso para o panfleto como se só agora notasse que tinha aquele papel nas mãos. Um breve flash do treinamento lhe veio à memória.

- Claro, o panfleto do banco Tatu, fique com ele, por favor.
- Obrigado, mas do que se trata?
- Ah, se trata, bom, se trata – João tentava ler o panfleto pra ver se lembrava que diabos ele estava ali oferecendo- ah, se trata de dinheiro.
- Quanto?
- Quanto? Ora, quanto o senhor quiser, mil, dois mil, um milhão, o banco Tatu tira o senhor do buraco, com o perdão da brincadeira.
- E quanto custa isso?
- Quando custa o quê? O dinheiro? Nada, o banco Tatu é camarada.

Contam que aí é que a vaca foi pro brejo e o tatu pro buraco, pois não é que João, de tanto desespero para lembrar o que dizer, começou a inventar vantagens, falava tudo que lhe vinha à cabeça.

- O Banco Tatu paga suas dívidas, meu senhor.
- Não acredito.
- Pois estou lhe dizendo, paga suas dívidas, as multas do seu carro, o colégio das suas crianças, o salão de beleza da sua mulher e ainda sobra pro senhor tomar umas cervejas...
- Eu não bebo.
- Não? Nem eu, não quis ofender, mas se bebesse, podia beber tranqüilo que o banco Tatu pagava a conta.
- E se eu precisasse de muito dinheiro?
- Quanto?
- Não sei, dinheiro pra viajar, comprar uma casa.
- Mole, pode entrar ali, ó, banco Tatu.
- Jura?

João cruzou os dedos sobre os lábios e deu aquele beijinho que sela os juramentos, tendo ainda o cuidado de acrescentar: “Pela minha mãe”. Não cabia em si de contentamento quando viu o indivíduo entrar no soturno e desabitado banco Tatu ante o olhar incrédulo das duas atendentes de caixa e do segurança de 80 anos.

Depois disso, as versões se confundem. Uns dizem que João enlouqueceu e saiu fazendo propaganda do banco Tatu pelo sertão nordestino, onde lidera uma seita de fanáticos por um tatu iluminado que brilha quando a pessoa vai ficar rica. Outros afirmam que a confusão causada pelo cliente iludido foi tão grande que o banco Tatu quase foi obrigado a fechar, mas os próprios funcionários, as duas caixas e segurança de 80 anos, deram um jeito de João se retratar na justiça que o condenou a 30 anos de cadeia. Há ainda quem jure que ele só levou uma bronca do chefe de pessoal e até hoje anda por aí, só que com outro nome, tentando se redimir e ver se alguma outra vez na vida arruma uma oportunidade de ter um cliente.

É esse desfecho que transforma os semblantes de promotores. Eles passam a olhar uns pros outros desconfiados, tentando identificar quem seria o famoso João, o cara que conseguiu fazer alguém parar e perdeu a chance.

Quem baixa a cabeça é suspeito, que ri muito também, quem não diz nada tem culpa no cartório. O Estevão não, o Estevão só pensa na falta de dinheiro. E nesse maldito calor.

Gisela Cesario

Thursday, January 04, 2007

Ande

Resolveu ir andando. Teve um minuto de paralisia de dúvida. Pra onde? Por quê? Se obrigou a continuar. O medo deixava as pernas pesadas. Medo de estar indo para o lado errado. De não conseguir voltar. Mas a voz dentro da sua cabeça continuava: ande! Não importa, ele sabia que nada importa, a verdade é que nada nunca importou até agora, Obedecia. Sempre obedecia a essa voz e somente a ela. Ouviu quando ela o mandou ir embora de todos os seus empregos, quando ela mandou que ele abandonasse todas as mulheres que amou, quando ela simplesmente ordenou que ele não mais telefonasse nem tentasse encontrar aqueles de quem sentia falta. Ande! E ele andava.
A caminhada esquentava os músculos e parecia que o medo se transformava numa euforia, a expectativa de um viajante que não conhece seu destino. Olhava os sapatos e ria, não se importando se quem o estivesse vendo ia achar estranho, se pensassem que ele estava louco. Ria mais ainda quando alguém estava olhando. O mundo é tão doido. Pensava em todas as piadas que já tinha ouvido, todas as gargalhadas voltavam, e aqueles sapatos, para onde diabos estavam indo aqueles pobres sapatos? Seus pés deixaram de lhe pertencer, ele terminava nas pernas, ou talvez no pescoço ou talvez aquele corpo inteiro tivesse vontade própria e ele fosse apenas uma alma presa ali dentro, condenado a compactuar com as decisões que a matéria tomasse.
Percebeu que desviava de algumas ruas, cortava caminhos entrando em galerias, por que cortava caminho? Estaria com pressa? Com certeza, tinha sensação de ser a primeira vez que andava na vida, será mesmo que sempre esteve parado? Mas fez tantas coisas...Foi tantas coisas...não sobrou nada? ANDE! Calma, não precisa gritar. Viu que tinha a diminuído sem querer a velocidade no momento em que começou a pensar por que estava andando e para onde e tudo o mais. Melhor só andar. Mas, e o cansaço? Logo as pernas iam começar a doer, ia sentir fome, dor no pés, ia ter que parar, quanto tempo? Ande. Examinou-se e notou com alguma satisfação que estava tudo bem, as pernas não reclamavam, o estômago também não, os pés, bom, os pés pareciam ser os únicos que sabiam o que estavam fazendo.
Tentou relaxar e apreciar o caminho: árvores, pessoas, nada muito diferente, vendedores, sinais de trânsito, pare, ande. Ande. O caminho era uma multidão, na calçada uma multidão de pedestres, nas ruas uma multidão de carros com uma multidão de pessoas dentros do carros, tudo isso junto resultava numa multidão de pés. Todos os pés andavam. Os dele também. Era isso que eles estavam fazendo. Todos os pés do mundo obedeciam a voz que estava na sua cabeça. Ande.

Gisela Cesario