Saturday, December 31, 2005

Por isso

- Então foi por isso…
- O quê?
- Por isso que eu quebrei o pé quando tinha 12 anos no acampamento.
- Como assim?
- Se eu não tivesse quebrado o pé, teria ido fazer canoagem no lago como todo mundo, não teria ficado na barraca lendo, não teria lido aquele livro da Alice no País das Maravilhas, não saberia porque o urubu é da cor do quadro negro.
- Não estou entendendo nada, acho que você já bebeu demais.
Era dia 31 de dezembro, os dois amigos, Beto e Lucas, estavam tomando um chopp num bar lotado em Copacabana, aquecendo-se para o reveillon. Mas Beto parecia nem reparar que o reveillon aconteceria daqui a algumas horas, ele parecia estar maravilhado com alguma descoberta visível apenas a seus próprios olhos.
- Você não está vendo, Lucas?
- Não, pelo jeito você está tendo alucinações também, além de falar maluquices.
- Você sabe por que o urubu é da cor do quadro negro?
- Ah, meu Deus...
- Não, Lucas, essa pergunta está no livro da Alice, que eu li quando tinha 12 anos e estava com o pé quebrado, esta pergunta foi também a pergunta que a Joana me fez, bêbada, na festa que nós nos conhecemos. Ela não acreditou quando eu disse que sabia a resposta, que tinha lido no livro. Foi aí que nós nos beijamos.
- E daí, Beto? Que diferença faz isso agora?
- Toda! Toda! Tudo foi por isso. Aquele perfume que eu ganhei da sua mãe no natal de 89, lembra?
- Claro que não, como vou me lembrar disso?
- Pois eu lembro, era horrível, que dizer, eu achava horrível, mas só um dia resolvi usar, antes de jogar o vidro fora. Nesse dia encontrei a Joana por acaso novamente e sabe o que ela disse?
- Nem faço idéia.
- Ela disse que meu perfume era ótimo, o preferido dela!
- Puxa, estou realmente impressionado!
- Não, cara, estou falando sério. Estou descobrindo agora que tudo na vida tem a sua razão de ser. Aquele adesivo idiota que diz que “o acaso não existe” está certo.
- E aquele do “eu acredito em duendes”?
Beto riu, mas não se abalou, continuou a explicar sua teoria ao amigo debochado.
- Lucas, não estou dizendo que existe um destino, que todos nós temos um destino traçado, que não adianta tentar fugir, a vida é uma tragédia grega, nada disso, só que estou descobrindo que algumas pessoas, entre elas eu, vive por uma razão única e básica, do mesmo jeito que alguns animais existem só para garantir o ciclo da sobrevivência.
- E qual seria a razão da sua nobre existência, meu amigo?
- Você não percebe? Por que eu sou seu amigo? Você já reparou como a Joana ri das suas piadas? Por que eu torço pelo Flamengo? Por que eu parei de comer comida japonesa?
- Ué, não foi porque você quase morreu com um peixe estragado?
- Não, idiota, porque a Joana acha um absurdo comer coisas cruas, ela até faz parte de uma comunidade que abomina o consumo de alimentos crus.
- A Joana é razão da sua existência?
- Percebeu? Por isso tenho sobrancelha grossa, ela gosta de homem com sobrancelha grossa, por isso mexo no cabelo quando fico nervoso, sei de cor a letra do Faroeste Cabloco, só paro na fila do meio do engarrafamento, só como amendoim sem casca, não leio jornal na praia, só fumo cigarro de filtro amarelo..
- Peraí, mas você parou de fumar.
- Claro, parei, alguns dias antes de conhecer a Joana, por isso parei de fumar, ela detesta cigarro, mas sabe o que ela me disse outro dia?
- Não, mas estou muito curioso.
- Que o único cigarro que ela poderia suportar se eu fumasse seria um de filtro amarelo.
- Cara, você pirou de vez, você acha então que você é uma concretização dos sonhos da sua mulher, você veio ao mundo para satisfazê-la, que nem o gênio da lâmpada?
- Não é tão absurdo assim, o universo por si só é uma loucura, viemos do pó e ao pó retornaremos, não sabemos como surgiu o mundo, uma grande explosão, não sabemos se somos descendentes do macaco.
- Pára, Beto, peloamorde Deus...Eu já peguei a Joana!
- O quê?
- É, eu não ia te contar nunca, prometi a ela, prometi a mim mesmo...
- Explica isso direito.
- Foi no início do namoro de vocês, a gente era tão amigo, a Joana começou a freqüentar os mesmos lugares, eu não sabia se era sério, ela era um mulherão,com todo respeito, claro.
- Claro, prossiga.
- Então, aí um dia, você tava doente, eu encontrei com ela por acaso na farmácia, ela tava indo comprar um remédio para sua gripe.
- Lembro, ela me disse que foi super difícil de achar.
- Foi mesmo. A farmácia não tinha, mas eu tinha lá em casa, ela foi até lá, por sua causa, mas foi, aí você sabe..
- Não, eu não sei, mas se você fizer a gentileza de contar.
- Você imagina, rolou, né!
- Rolou exatamente o quê?
- Sexo, cara, eu transei com a Joana!
- A há!!!
Como se tivesse realmente enlouquecido, Beto começou a pular e abraçar o amigo, ria, gargalhava e gritava.
- Foi por isso, por isso....
- O quê? O quê? – o amigo tentava se desvencilhar dos braços do outro, primeiro achou que ia apanhar, agora não sabia se ia ganhar um beijo na boca. – Me larga, Beto, tá louco!
- Por isso, hoje quando saí de casa, a Joana me abraçou e pediu desculpas e me obrigou a pedir desculpas também, falou que assim começaríamos o ano novo zerados, sem ofensas de um para o outro, aceitei só pra agradar, mas achei loucura, por que aquilo? Perdoar o quê? E você viu? Quis o destino, mais uma vez, vim até aqui e você me contou isso...e agora, como já desculpei tudo mesmo sem saber o que estava desculpando, não posso fazer mais nada! Por isso comecei a pensar nessa teoria do destino de por isso uma coisa, por isso outra...Por isso, cara, por tudo isso!!!
Lucas não sabia se ria ou ficava triste, não sabia se o amigo perdera de vez a cabeça ou se tinha mesmo razão. Afinal, por que ele tinha resolvido contar essa história logo hoje? Enquanto se questionava, não podia deixar de invejar a certeza do amigo que bradava:
- Por isso! Por isso!

Gisela Cesario

Friday, December 09, 2005

Os afogados

Os afogados

À distância, podia parecer que ela estava se divertindo, nadando, aproveitando a tarde de sol naquele marzão azul, um mar tão aparentemente calmo, uma beleza de mar, tudo naquelas águas era paz, tranqüilidade, mas se bem que, se bem que, aquela mulher, ou seria uma garota? Aquela pessoa ali parecia meio agitada.

Acenou para ela, tinha certeza que não estava acontecendo nada, foi só um aceno para dizer olá naquela tarde tão linda onde ela, com certeza, estava se divertindo tanto. Mas ela não acenou de volta, a cabeça dela afundou e saiu da água repetidas vezes e ela não acenou. Será que estava acontecendo alguma coisa?

Com certeza não, mas, você sabe, só para ter certeza absoluta, ele, um banhista comum, entrou naquele mar tão manso para chegar mais perto dela. Era só esticar o braço um pouco, bom, talvez, um muito, e ele estaria perto dela, e o mar estava tão manso, ele não corria risco algum.
Ela continuava afundando e voltando, estava brincando, claro, riu um riso nervoso e começou a nadar mais forte em direção ao fundo, não tinha nada de mais.

Finalmente chegou perto da moça, se sentia cansado, mas a sensação devia ser falsa, pois num dia tão lindo, com um mar tão calmo, todo mundo se sentia bem. Pegou mais ar, falou com a moça, brincalhona com certeza.

- Tudo bem?
- Me ajuda, estou morrendo...
- Quê?
- Me ajuda...
- Você está se afogando?
- Claro, não ta vendo?
- Nesse mar tão lindo e calmo?
- Lindo? Você acha lindo morrer no mar como aquela música?
- Mas é impossível se afogar nesse mar – ele tinha certeza, ou quase, disso.

Ela afundou novamente, não respondeu com palavras, só com borbulhas, estava perdendo as forças.

- Moça
- ...

De repente, percebeu uma coisa, onde ele estava não dava pé. Estava fundo mesmo. E a praia estava tão distante, não estava mais um dia bonito como parecia, tinha umas nuvens pretas, ia chover logo, o tempo ia mudar.

- Moça

Ela não respondeu novamente e ele tentou nadar em direção a ela, sentiu uma coisa estranha, a correnteza...ele não tinha percebido que havia correnteza, pensou que tinha chegado ali sozinho, mas não, a correnteza o levara e parecia que continuava levando, em direção à moça e para longe da praia. Ele nunca acreditou em correnteza, ele nunca acreditou em destino, ninguém podia leva-lo para onde ele não estava querendo ir.

- Moça!!!
- Me ajude..- ela conseguiu dizer entre uma afundada e outra.
- Estou indo.

Foi até ela sem querer novamente, agarrou sua cintura sem querer, começou, sem querer, a sentir o mesmo desespero que ela.

- Pronto, estou aqui.
- Me ajude...
- Estou tentando, mas estamos indo cada vez mais pro fundo...
- Eu sei, a gente vai morrer
- O quê?
- Vamos morrer, se ninguém ajudar, estamos morrendo...
- Mas está um dia tão lindo, ninguém imagina que estamos morrendo afogados,

Ela deu um suspiro e afundou, há horas estava lutando contra a maré. A maré era mais forte. Como sempre, o mais forte vence.

- Moça, você está bem?
- ....
- Moça?
- ...
- Por favor, não vá agora, não estou me sentindo bem, parece que esse mar tão manso está me levando, ninguém lá na praia vai imaginar que...Moça!

Ela estava totalmente inerte, ele a segurou e sentiu que não pesava nada. De repente, seu próprio corpo também estava mais leve. Dessa vez, não gritou, apenas sussurrou...

- Moça...não conte pra ninguém, mas eu acho, eu tenho quase certeza, que estou me afogando também, estou morrendo, nesse dia tão lindo...

Gisela Cesario