Por isso
- Então foi por isso…
- O quê?
- Por isso que eu quebrei o pé quando tinha 12 anos no acampamento.
- Como assim?
- Se eu não tivesse quebrado o pé, teria ido fazer canoagem no lago como todo mundo, não teria ficado na barraca lendo, não teria lido aquele livro da Alice no País das Maravilhas, não saberia porque o urubu é da cor do quadro negro.
- Não estou entendendo nada, acho que você já bebeu demais.
Era dia 31 de dezembro, os dois amigos, Beto e Lucas, estavam tomando um chopp num bar lotado em Copacabana, aquecendo-se para o reveillon. Mas Beto parecia nem reparar que o reveillon aconteceria daqui a algumas horas, ele parecia estar maravilhado com alguma descoberta visível apenas a seus próprios olhos.
- Você não está vendo, Lucas?
- Não, pelo jeito você está tendo alucinações também, além de falar maluquices.
- Você sabe por que o urubu é da cor do quadro negro?
- Ah, meu Deus...
- Não, Lucas, essa pergunta está no livro da Alice, que eu li quando tinha 12 anos e estava com o pé quebrado, esta pergunta foi também a pergunta que a Joana me fez, bêbada, na festa que nós nos conhecemos. Ela não acreditou quando eu disse que sabia a resposta, que tinha lido no livro. Foi aí que nós nos beijamos.
- E daí, Beto? Que diferença faz isso agora?
- Toda! Toda! Tudo foi por isso. Aquele perfume que eu ganhei da sua mãe no natal de 89, lembra?
- Claro que não, como vou me lembrar disso?
- Pois eu lembro, era horrível, que dizer, eu achava horrível, mas só um dia resolvi usar, antes de jogar o vidro fora. Nesse dia encontrei a Joana por acaso novamente e sabe o que ela disse?
- Nem faço idéia.
- Ela disse que meu perfume era ótimo, o preferido dela!
- Puxa, estou realmente impressionado!
- Não, cara, estou falando sério. Estou descobrindo agora que tudo na vida tem a sua razão de ser. Aquele adesivo idiota que diz que “o acaso não existe” está certo.
- E aquele do “eu acredito em duendes”?
Beto riu, mas não se abalou, continuou a explicar sua teoria ao amigo debochado.
- Lucas, não estou dizendo que existe um destino, que todos nós temos um destino traçado, que não adianta tentar fugir, a vida é uma tragédia grega, nada disso, só que estou descobrindo que algumas pessoas, entre elas eu, vive por uma razão única e básica, do mesmo jeito que alguns animais existem só para garantir o ciclo da sobrevivência.
- E qual seria a razão da sua nobre existência, meu amigo?
- Você não percebe? Por que eu sou seu amigo? Você já reparou como a Joana ri das suas piadas? Por que eu torço pelo Flamengo? Por que eu parei de comer comida japonesa?
- Ué, não foi porque você quase morreu com um peixe estragado?
- Não, idiota, porque a Joana acha um absurdo comer coisas cruas, ela até faz parte de uma comunidade que abomina o consumo de alimentos crus.
- A Joana é razão da sua existência?
- Percebeu? Por isso tenho sobrancelha grossa, ela gosta de homem com sobrancelha grossa, por isso mexo no cabelo quando fico nervoso, sei de cor a letra do Faroeste Cabloco, só paro na fila do meio do engarrafamento, só como amendoim sem casca, não leio jornal na praia, só fumo cigarro de filtro amarelo..
- Peraí, mas você parou de fumar.
- Claro, parei, alguns dias antes de conhecer a Joana, por isso parei de fumar, ela detesta cigarro, mas sabe o que ela me disse outro dia?
- Não, mas estou muito curioso.
- Que o único cigarro que ela poderia suportar se eu fumasse seria um de filtro amarelo.
- Cara, você pirou de vez, você acha então que você é uma concretização dos sonhos da sua mulher, você veio ao mundo para satisfazê-la, que nem o gênio da lâmpada?
- Não é tão absurdo assim, o universo por si só é uma loucura, viemos do pó e ao pó retornaremos, não sabemos como surgiu o mundo, uma grande explosão, não sabemos se somos descendentes do macaco.
- Pára, Beto, peloamorde Deus...Eu já peguei a Joana!
- O quê?
- É, eu não ia te contar nunca, prometi a ela, prometi a mim mesmo...
- Explica isso direito.
- Foi no início do namoro de vocês, a gente era tão amigo, a Joana começou a freqüentar os mesmos lugares, eu não sabia se era sério, ela era um mulherão,com todo respeito, claro.
- Claro, prossiga.
- Então, aí um dia, você tava doente, eu encontrei com ela por acaso na farmácia, ela tava indo comprar um remédio para sua gripe.
- Lembro, ela me disse que foi super difícil de achar.
- Foi mesmo. A farmácia não tinha, mas eu tinha lá em casa, ela foi até lá, por sua causa, mas foi, aí você sabe..
- Não, eu não sei, mas se você fizer a gentileza de contar.
- Você imagina, rolou, né!
- Rolou exatamente o quê?
- Sexo, cara, eu transei com a Joana!
- A há!!!
Como se tivesse realmente enlouquecido, Beto começou a pular e abraçar o amigo, ria, gargalhava e gritava.
- Foi por isso, por isso....
- O quê? O quê? – o amigo tentava se desvencilhar dos braços do outro, primeiro achou que ia apanhar, agora não sabia se ia ganhar um beijo na boca. – Me larga, Beto, tá louco!
- Por isso, hoje quando saí de casa, a Joana me abraçou e pediu desculpas e me obrigou a pedir desculpas também, falou que assim começaríamos o ano novo zerados, sem ofensas de um para o outro, aceitei só pra agradar, mas achei loucura, por que aquilo? Perdoar o quê? E você viu? Quis o destino, mais uma vez, vim até aqui e você me contou isso...e agora, como já desculpei tudo mesmo sem saber o que estava desculpando, não posso fazer mais nada! Por isso comecei a pensar nessa teoria do destino de por isso uma coisa, por isso outra...Por isso, cara, por tudo isso!!!
Lucas não sabia se ria ou ficava triste, não sabia se o amigo perdera de vez a cabeça ou se tinha mesmo razão. Afinal, por que ele tinha resolvido contar essa história logo hoje? Enquanto se questionava, não podia deixar de invejar a certeza do amigo que bradava:
- Por isso! Por isso!
Gisela Cesario
1 Comments:
O mundo encantado do vírus chegou aos blogs, veja esse idiota aí...
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