Outras Palavras
Lúcio era um homem de poucas palavras. Nunca ia além de um bom-dia no elevador. Não falava com os vizinhos, conversava apenas sobre os problemas do escritório com os colegas de trabalho e vivia inventando desculpas para fugir das reuniões de família que sempre significavam longas conversas, intermináveis reminiscências. Vivia bem assim, no seu silêncio, até conhecer Ana Paula. Estava num bar, num raro momento de descontração, ouvindo um amigo falar, já que ele mesmo pouco dizia, quando a viu sentar em uma mesa próxima com uma amiga. Ruiva. Olhos azuis. Sardas que começavam na pontinha do nariz e iam descendo de maneira indecente pelo seu decote. Se Lúcio fosse de falar teria perdido a fala. Mas foi ao contrário, começou a tagarelar com o amigo, que estava assustado, nunca tinha visto Lúcio falar tanto. Explicou que estava vendo a mulher da sua vida, que precisava fazer alguma coisa, que precisava de uma ajuda, um conselho, uma sugestão, peloamordeDeuss...Chega! Calma, cara, manda um torpedo para ela. Um torpedo, não sei o que é isso! Um bilhetinho num guardanapo, idiota. Chama o garçom. Não, não sei o que escrever. Qualquer coisa, você é linda, manda um chopp pra ela. Um chopp, linda, que vulgar, não posso fazer isso. Instintivamente, pegou a caneta e escreveu uma palavra só no guardanapo: Liríadas. Entregou ao garçom que ia passando e preferiu não mandar bebida alguma acompanhando. O que você escreveu? Liríadas. O quê? Liríadas – É uma chuva de estrelas fugazes, visível entre 18 e 24 de abril na constelação da Lira. Ficou louco? Ela não vai entender isso. Para espanto do amigo de Lúcio, a moça abriu um sorriso de orelha a orelha quando leu o guardanapo. Em um minuto estava sentada à mesa, ao lado de Lúcio. Em dois dias estavam namorando. Em um mês se casaram e foram morar juntos. Uma noite a moça lhe confessou. Queria que você fizesse aquilo de novo. Você nunca mais fez. Aquilo o quê? Lúcio tentou se lembrar de alguma peripécia sexual que pudesse ter surtido aquele efeito, mas também não era homem de muitas peripécias. Aquilo o quê? Você sabe. Liríadas. O que tem Liríadas? Fala outra. Outra? Outra palavra que eu nunca tenha ouvido. Você não sabe o que é Liríadas? Não me conte, por favor, não quero saber. Gosto de imaginar. Liríadas pode ser uma poesia feita em versos dodecassílabos de quatro estrofes, usada por poetas do século XIX para falar com a mulher que amavam. Não é bem isso... Não me conte, apenas diga outra. Vamos, outra. Eu preciso. Ana Paula tirava a roupa enquanto suplicava e ia subindo em cima do esposo, fazendo provocações, rebolando, jogando o cabelo, mordendo seu pescoço. Outra...Outra...Começaram o ato sexual assim, nessa insanidade, Lúcio perplexo e Ana Paula quase chorando de desespero. Outra. Por favor. Só mais uma! Lúcio rezou para que seu tesão lhe desse forças para lembrar de uma palavra bem difícil que a moça não conhecesse. Pensou, voltou aos tempos da escola, lembrou de seu dicionário velho, um Aurélio encapado de papel contact, finalmente arriscou: Cataclisma. Levou um tapa na cara, um tapa forte, seu rosto chegou a arder. Ana Paula estava possessa, passou a transar com mais veemência ainda e quase cuspiu-lhe a cara para dizer: Eu sei o que é cataclisma, cretino. Aí fez beicinho e começou a choramingar novamente. Eu preciso de outra. Outra. Uma luz divina desceu sobre a confusa mente de Lúcio, uma palavra inteirinha brilhando ali, para ele. Se fez de difícil. Pede mais. Isso. Isso. Pede. Ana Paula pediu com todas as suas forças. Lúcio esperou que a moça chegasse ao seu limite. Sícofago! Hã? Ela abriu bem os olhos para ele. Si-co-fá-go. Ela gemeu alto antes de desmaiar de êxtase. Sícofago é aquele que se alimenta de figos. Lúcio lembrou de uma professora primária que chamou um menino comilão de sícofágo. Óbvio que Ana Paula nunca tinha ouvido aquela palavra. Dormiu satisfeito e tão realizado quando a mulher ressonante ao seu lado. Não sabia o que estava por vir. Ana Paula era viciada em palavras de significado desconhecido. Capaz de se masturbar com um dicionário de sinônimos. Todo dia queria mais. Outra. Outra, por favor. Quando Lúcio não conseguia, ela dormia choramingando enquanto ele a consolava. Amanhã eu consigo, juro. Ao acordar se deparava com uma mulher de olhos arregalados, apreensiva. E aí? Sonhou com outra? Outra? Outra palavra, cretino, preciso de outra palavra. Passou a só lhe chamar de cretino. Deixou de ser carinhosa, era uma predadora, uma vampira que se alimentava de palavras esdrúxulas. Lúcio vivia em bibliotecas, tentando arrumar mais suprimento: Rodogastréo, Quemose, pertiga, orear. No dia do aniversário da esposa, deu-lhe uma caixinha, dentro um papel rosado bem dobrado. Ao desdobrar a última dobra estava lá: parequema. Tiveram uma noite tórrida. Ana Paula berrava: Parequema, Parequema! Mas era só o dia amanhecer e ela já estava sedenta por outra. Lúcio vivia cansado, arrumou uma alergia à poeira de tanto freqüentar sebos e um problema na visão de tanto ler dicionários de letra pequena. Estava magro, abatido, dormia mal, pensando em como poderia fazer para arrumar mais uma palavra. Resolveu seguir o conselho do amigo. Essa mulher é doida, cara, pode ser gostosa, mas é doida. Sai dessa enquanto é tempo. Chegou em casa decidido. Olhou bem nos olhos famintos de palavras de Ana Paula e disparou. Chocolate, casa, bebê, gato, pato, garrafa...O quê é isso? Pirou? Pará com essas palavras idiotas! Cansei! Não quero mais. Não agüento mais! Ah, é? Então não vai me ver nunca mais. Ana Paula chorava e arrumava as malas enquanto Lúcio ignorava sua dor e ia bombardeando: livro, mesa, prato, pregador, toalha. Foi atrás dela no corredor, enquanto ela arrastava as malas. Lustre. Mão. Caixa. Tijolo.Flor. Os vizinhos nada entendiam daquele casal maluco. Ela apertava o botão do elevador várias vezes, querendo abreviar o sofrimento de ouvir aquelas palavras banais. Tatu, armário, botão, papel, rio, supermercado, carta, almofada. O elevador finalmente engoliu Ana Paula e as malas. Eu te amava, cretino. A porta do elevador fechou com força. Ou pareceu, pela força das palavras de Ana Paula. Eu te amava. Cretino. Lúcio, que pensou que ficaria feliz, que se sentiria aliviado sem a pressão de ter que arrumar uma palavra nova todo dia, estava se sentindo um cretino. Estava se sentindo um pária. Estava se sentindo um pacóvio. Será que ela conhecia essa? Pacóvio? Não era das melhores mas,..Saiu correndo do apartamento. Ela ainda devia estar esperando um táxi, do jeito que era difícil pegar táxi naquela rua. Corria com a palavra na cabeça: pacóvio, arf, pacóvio, uff, pacóvio. Ela estava lá, parada na esquina, enxugando as lágrimas. Ele chegou gritando. Me perdoa, Ana, não sei o que me deu, sou um pacóvio, amor, um pacóvio. As lágrimas nos olhos da moça deram lugar a um brilho no mínimo insano. Ela repetiu lentamente, com a docilidade de uma criança triste que ganha um picolé. Pá-co-vi-o. Gosto assim, proparoxítona. Ele sabia. Ela olhou com carinho para ele e o abraçou. Os dois riram e se beijaram. Ele pegou as malas e eles foram abraçados pela rua repetindo como um mantra. Pacóvio, pácovio, pacóvio, pacóvio em ritmo de samba, de bolero, pacóvio em ritmo de tango, de axé music, pacóvio pra lá, pacóvio pra cá, entraram no apartamento, jogaram as malas para qualquer lado e pacóvio ali mesmo na mesa de jantar. Naquela noite, no bar, Lucio tinha razão, era ela mesmo a mulher da sua vida. Apesar de tudo. E por isso mesmo, minutos depois de vê-la saciada, olhou-lhe bem fundo nos olhos, acariciou-lhe os cabelos ruivos e ofereceu sensualmente. Outra?
Gisela Cesario
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