Suícidio
Estava pendurada em uma ponte. Só três dedos a seguravam no frio metal. Chovia e ventava como normalmente acontece no inverno carioca. Era a ponte rio-niterói. Seu corpo já havia desistido da vida e a maior parte da sua mente também. Apenas aqueles três dedos e alguns neurônios reivindicavam o que era seu por direito: a vida.
Vinha passando alguém. Convenhamos, não é normal vir passando alguém a pé , de noite, pela ponte rio-niterói. Então, pensou a suicida, seria um enviado de Deus. Talvez até fosse, mas o que ele era mesmo era um funcionário de manutenção da ponte. O carro parado naquele ponto da ponte tinha chamado atenção e ele fora mandado até ali para ver o que estava acontecendo.
Olhou para aquela mulher, corpo dependurado, olhos suplicantes, e perguntou:
- Senhora, seu carro está atrapalhando o trânsito. Posso ajudar?
- Pode, me salve.
Ele olhou a mulher pendurada. Os olhos dela estavam vermelhos, de choro, medo, terror. De esperança? Ele também teve medo.
- Como?
- Me salve. Me puxe. Me ajude a não morrer.
- A senhora está se matando?
- O que você acha? Estou aqui pendurada na ponte no meio da noite. Pensa que estou praticando bungee-jumpee?
- A senhora poderia me dar as chaves?
- Que chaves?
- As chaves do seu carro, para eu poder tirá-lo da pista enquanto a senhora faz o que tem que fazer.
- Eu vou me matar.
- Sim, estou pedindo que antes a senhora me dê as chaves...
- Insensível, desgraçado! Não vê que é a minha vida que está em perigo?
- A tranqüilidade do trânsito também.
- Mas eu sou um ser humano!
- Sei, milhões de seres humanos como a senhora estão nas ruas: roubando, pedindo esmolas, cometendo atrocidades... A senhora deve estar desesperada, não está?
- Estou- disse a mulher, sentindo uma incrível dor nos três dedos que a seguravam e tendo os olhos cheios de lágrimas.
- Pois é, como a senhora, há aos montes. Mas não pense que só porque tem um carro é mais importante que aqueles que não têm. O trânsito na ponte tem que fluir. Já pensou se cada um que tivesse um problema resolvesse estacionar aqui?
- Mas, eu não sou qualquer um.
- É? Qual a diferença? Talvez só o seu o carro parado atravancando o trânsito. Por favor, me dê as chaves...
- Seu imbecil, você não vê que se eu largar essa ponte eu morro, caio com chave e tudo?
- Não tem uma maneira de a senhora pegar as chaves?
- Tem! Me ajude a subir e eu pego.
Com visível esforço e enorme má vontade, ajudou a mulher a subir. Ela pareceu aliviada e indecisa ao sair daquela situação. Estava, assim, como se diz, sem jeito mesmo.
- Obrigada, não precisava.
- Claro que precisava. E as chaves?
- Ah, as chaves – fingiu procurar as chaves do carro num bolso que não existia em seu vestido. Fez uma cara de desculpe e disse:
- Acho que caíram lá embaixo.
- O quê? – O horror do homem era espantoso. A vida nada significava para ele. Seu único objetivo era o trabalho bem feito, o trânsito livre, as malditas chaves do carro.
- Vá pegar- a mulher disse isso e empurrou o pobre coitado ponte abaixo.
Seu corpo foi caindo de uma maneira mais lenta que o normal. Ela pensou que os corpos caíssem mais depressa. Mas não, era devagar, dava para ver a expressão de espanto do coitado. Primeiro o espanto, depois a decepção, depois o torpor. Não era um homem de ódios.
Ela, por sua vez, queria vingança. E achou uma maneira de se vingar de tudo. Da futilidade da vida. Dos olhares insensíveis. Das ambições desmedidas. Não se jogou. Fez muito pior. Simplesmente saiu andando. Deixando o carro atravancado na ponte. Agora tinha consciência que existia algo pior que a morte de um desconhecido. Atrapalhar o trânsito.
Gisela Cesario
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