Saturday, March 26, 2005

o menino

Zezinho acordou diferente naquela manhã. Sentia um cansaço enorme, algo incomum para um menino de 8 anos. Sem abrir os olhos, decidiu que não iria ao colégio. Estava se sentindo tão mal que não seria preciso mentir pra sua mãe, devia estar com febre mesmo.
Como precisava ir ao banheiro, foi obrigado a levantar e enquanto passava pelo corredor ouviu uma voz de mulher que não era a da sua mãe.
- Não vai trabalhar hoje? É feriado?
Não olhou para trás, achou que devia ser da televisão, rádio, qualquer coisa assim. No banheiro, estranhou alguns objetos: pílulas, muitas pílulas, giletes, maquiagem, cremes, sua mãe não usava aquelas coisas, ele também não. Seu rosto no espelho não estava diferente dos outros dias. O mesmo cabelo espetado, as mesmas bochechas redondas, os olhos pequenos ao acordar, será que a sua mãe ia acreditar que ele estava com febre? Pensou que não estava se sentindo mais tão mal e ir à escola afinal não era tão ruim assim, ele tinha muitos amigos.
Saiu do banheiro se sentindo mais animado e foi procurar seu café que já devia estar pronto. Ao chegar na cozinha tomou um susto enorme. Uma mulher que ele nunca vira na vida estava sentada, de camisola, com uma xícara na mão e um jornal na outra. Ela estava muito à vontade e nem teria notado a presença dele não fosse pelo grito.
- Ai! Que susto! Quem é a senhora?
- Engraçado, bom dia, não vai trabalhar?
- Desculpa, moça, mas quem é a senhora?
- José Carlos, pára com essa idiotice, dormi super mal, tô com dor de cabeça, não tô com paciência pra brincadeira. Não vai dizer que logo hoje, no dia de pegar o adiantamento do dinheiro com seu chefe, você vai querer chegar atrasado.
- Meu chefe?
- É, lembra dele? Aquele cara que paga o seu salário para gente viver.
- Salário?
Zezinho não fazia a menor idéia do que aquela mulher estava falando. A sua cozinha também estava muito esquisita, toda desarrumada. E onde estava sua mãe?

- Eu quero a minha mãe... – E começou a fazer beicinho para chorar.

A mulher levantou da cadeira e o abraçou. A sensação era estranha. Estranha e boa. Os cabelos dela estavam molhados e cheiravam a uma coisa gostosa.

- Calma, amor, vai dar tudo certo. Se você pegar o dinheiro hoje, a gente paga a primeira parcela do empréstimo e o banco deixa a gente em paz.

Ele estava tão inebriado com aquele abraço que nem se deu ao trabalho de responder. Preferiu continuar afundado naqueles cabelos cheirosos. Iria continuar assim se o telefone não tivesse tocado. Ela o soltou tão bruscamente que ele quase caiu. Ela atendeu correndo, como se já soubesse quem ligava. O telefone também não era o seu, parecia um treco de brinquedo, não tinha fio, nem disco, aquilo não podia ser um telefone. Aquela mulher devia ser maluca, pensou.

- Alô – disse ela, numa voz estridente.- Oi, Seu Ari, o Zé Carlos tá aqui, ele se atrasou um pouquinho mas já está indo. O quê? O senhor quer falar com ele?
Tapou um pedaço do brinquedo com mão e falou só mexendo a boca, sem voz.

- ELE QUER FALAR COM VOCÊ- disse isso, apontando na direção de Zezinho, que pegou o telefone, desnorteado.
- Alô – disse o menino.
- Porra, Zé, tá dormindo? Os caras já chegaram. Eles querem falar contigo. Se você não estiver aqui em 20 minutos não sei não.
- Porra? O senhor disse porra?
- Caralho, Zé!
Zezinho emitiu um grunhido e bateu o telefone assustado. Que homem grosso! Se a sua mãe soubesse! Mania dessa gente ficar ligando e dizendo palavrão.

- Você bateu o telefone na cara do seu Ari? – perguntou a mulher.
- Não conheço nenhum Seu Ari, era trote. Daqueles que as pessoas ligam e ficam dizendo palavrões.
- José Carlos, você enlouqueceu! Você pirou!- a mulher começou a gritar loucamente. Gritava e quebrava as louças, primeiro foi a xícara, depois o prato, e também xingava palavrões.

Zezinho achou melhor sair correndo dali. Ao entrar no elevador, que também estava diferente, viu um menino que o cumprimentou assim.

- Bom dia, seu Zé.

Ele riu. Era brincadeira, claro. Mas quem era aquele menino? Seria da escola?
- Oi, você tá na minha sala?
- Não, seu Zé, tô aqui no elevador – respondeu o menino com uma cara de quem conversa com um esclerosado.

Saíram na portaria e o porteiro correu para ele.

- Seu Zé, se esconde, o moço do banco tá aí, eu já disse que o senhor e a patroa tinham saído, se esconde, seu Zé.

Patroa, Chefe, Seu Zé, que diabo estava acontecendo? Ele achou melhor não desobedecer aquele cara, era um nordestino forte, bigodudo, do tipo com quem não se puxa briga. Ele se deixou ser levado para uma porta que dava para escada.

- Pronto, sai pela garagem, assim o senhor escapa hoje!

Olhando a garagem, Zezinho não acreditou no que via. Que carros! Aquilo era mais incrível que qualquer sonho. Faróis redondos, cores metálicas, rodas brilhantes, quatro portas! Finalmente alguma coisa legal nesse dia tão esquisito. Rapidamente ele esqueceu do porteiro que já subia a escada. Em seguida, abriu um sorriso enorme. Não, hoje ele não ia à escola. Ia passar o dia naquele parque de diversões. Nenhum dos seus amigos ia acreditar quando ele contasse. Do outro lado da garagem, viu a picape mais linda do mundo. Parecia que a cabine tinha sido esticada e ela estava cheia de adesivos. Foi atravessando a garagem enquanto reparava nos detalhes do carro e nem viu quando um outro carro, que tinha acabado de subir a rampa, veio em sua direção. O motorista não teve tempo de frear. Quando conseguiu, Zezinho já estava em baixo do carro. A imagem da picape sumiu rapidamente dos olhos do menino. Enxergando somente a escuridão, ele ainda conseguiu escutar o grito desesperado do motorista.

- Meu Deus, matei uma criança!

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