Tuesday, April 19, 2005

xis

Era uma vez uma pessoa que não conseguia guardar imagens. Ela, essa pessoa, só guardava palavras. Como assim? Por exemplo, se essa pessoa, vamos chamá-la de X, se X fosse a uma reunião, iria olhar fixamente para todos os participantes. X argumentaria, exporia suas opiniões, defenderia suas teses, tudo isso olhando bem nos olhos de todas as pessoas que estivessem presentes. X poderia até reparar nos detalhes, perceber que a gravata de alguém já estava velha, que os sapatos do outro eram de um couro importado, nenhum detalhe escaparia aos astutos olhos de X. Esses detalhes seriam processados na mente de X para descobrir a personalidade dos donos dos detalhes, quem era pobre, rico, gay, esquizofrênico. Quando saía de um evento como esse, X estava sempre acabado ou acabada, já que X é uma pessoa sem sexo. Fechava os olhos e pensava: “Sim, tenho tudo que aconteceu guardado na memória”. No entanto, em poucos minutos, as imagens das pessoas iam se dissolvendo na mente de X. Isso mesmo, se dissolvendo, se derretendo, como um boneco de neve no sol, ia se tornando impossível distinguir as feições, o que era nariz, o que era orelha, tudo ia virando um grande borrão. As gravatas perdiam as cores, tremulavam as estampas como numa tv mal sintonizada, os sapatos, que sapatos? Não seriam botas? Ou será que eram tênis? X não sabia mais. Que grande momento de tensão era esse pra X. Ele ou ela não sabia mais, não poderia reconhecer nenhum dos participantes na rua. De olhos cerrados, mãos acariciando a testa nervosamente, X puxava pela memória. E vinham frases. “ Eu não disse que era impossível, disse que era improvável”. “O dia de hoje foi muito produtivo”. “Concordo plenamente, X está certo”. “Participar dessa reunião é uma grande honra para mim.” Todas as palavras estavam ali, numa seqüência perfeita, que X poderia reproduzir sem pular uma só interjeição que fosse. Uma vez X realmente fez isso. Havia saído com uma pessoa do sexo oposto ao dele ou dela e os murmúrios, os uivos de paixão, as palavrinhas obscenas não lhe saíam da cabeça. Não agüentando mais ser torturado por tantas palavras sem nenhuma imagem, X sentou pesadamente em sua cadeira e com toda sofreguidão foi reproduzindo todos os diálogos da noite em um bloco de papel. Do boa-noite da chegada ao boa noite da saída. Eram mais de 100 pequenas páginas. Quantas bobagens, quantas bobagens haviam sido ditas. X sempre ficava impressionado com o número de bobagens que as pessoas diziam. Morria de vergonha das suas bobagens. Seu único alívio era que as pessoas não tinham uma memória com a de X. Elas não iam lembrar de todas as palavras. Foi então que X teceu uma teoria. A memória do ser humano é parecida com a memória de um computador. As imagens ocupam muito espaço em bytes. Já as palavras só ocupam um espaço pequenino, um grande texto, um livro ocupa menos espaço que uma foto três por quatro. As pessoas guardavam o rosto de X, assim não sobrava muito lugar para guardar o que X dizia. Já ele ( ou ela) não possuía esse dispositivo. Se a memória de X fosse uma memória de computador, seria uma com defeito. Incapaz de reter imagens. Somente arquivos texto. Cansado(a), X jogou a cabeça para trás, tentou em vão lembrar do seu próprio rosto. Não conseguiu. Recordou apenas e instantaneamente suas últimas palavras. “A vida dos outros é um filme, a minha é um livro, daqueles sem figuras”. Pensando nisso,foi escrever sobre uma pessoa chamada X.

Gisela Cesario

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