Monday, April 11, 2005

Poeta

Era uma sexta-feira, dessas em que parece que todos têm alguma coisa muito importante para fazer no final de semana e não podem se atrasar nenhum minuto.Com o motorista dessa história não era diferente. Apesar de não ter nenhum compromisso especial, ele estava contaminado pelo espírito de sexta-feira que engarrafa o trânsito e faz com que todos os motoristas se tornem ainda mais impacientes do que o normal.
Ele avançou um sinal numa esquina movimentada do Leblon. Não avançou assim, na cara dura. Foi aquela coisa de o sinal ficar amarelo e logo vermelho na hora em que justamente o seu carro vai passar e aí você olha e vê que os carros do cruzamento ainda estão parados e lógico que eles vão esperar você passar e depois você finge que não viu o sinal mudar de amarelo para vermelho e pronto, você avança o sinal, mas assim, discretamente. E qual é a próxima coisa que o motorista dessa história faz? Claro, aquilo que todo mundo faria. Olha pelo espelho para ver se tem guarda. Nunca tem. Ou melhor, dificilmente em. Ou melhor ainda, nesse dia, como em todos os dias em que a última coisa você quer é conversar com um guarda, nesse dia, claro, tinha um guarda. Novamente ele fez o que provavelmente você também faria. O retorno. Voltou com cara de menino que fez bagunça na aula e está arrependido e foi falar com o guarda que anotava em seu bloquinho.

- Seu Guarda, por favor, posso falar com o senhor um minutinho? (disse isso respeitosamente, apesar de o guarda aparentar ter no máximo 30 anos)
- Sim – O guarda pareceu assustado, como se não esperasse aquela abordagem.
- Olha só, eu vi que o senhor me anotou porque eu avancei o sinal mas eu quero explicar que..
- Eu não anotei o senhor – interrompeu o guarda.
- Bom, eu vi o senhor anotando.
- Sim, realmente eu estava anotando, mas não era a placa do seu carro.
- Não?
- Não.
- O que era então? – perguntou, realmente curioso.
- O senhor não acha que está querendo saber demais?
- Não, desculpe, é que eu avancei o sinal, mas foi porque mudou muito rápido de amarelo pra vermelho e eu não vi porque estava com pressa porque estou atrasado, o senhor sabe...
- Sei, se está com pressa, por que está aqui parado conversando comigo? Passou a pressa?
- Não, continuo com pressa, mas é que como vi o senhor anotando a minha placa...
- Olha, só se o senhor fosse o super-homem poderia ter visto o que eu estava anotando aqui na esquina, no meu bloquinho, lá do seu espelho retrovisor do outro lado da rua.
- Bom, claro que isso eu não vi, mas imaginei que fosse a minha placa porque eu avancei o sinal.
- O senhor avançou o sinal?
- Sim, eu...

Imediatamente o guarda começou a olhar a placa do carro dele e copiá-la no bloquinho.
- O que o senhor está fazendo?
- Estou anotando a sua placa, o senhor acabou de dizer que avançou o sinal, assim posso mandar uma multa pra sua residência.
- Não, pelo amor de Deus, vamos conversar.
- Conversar? Mas o senhor não estava com pressa? Se parou aqui só pra me dizer que avançou o sinal é porque está querendo uma multa, não é?
- Eu não avancei o sinal.
- Agora o senhor está se contradizendo.
- Quero dizer eu não avancei o sinal de propósito.
- Ah, foi um avanço de sinal culposo.
- O quê?
- Não intencional, assim como tem homicídio culposo e doloso...bom, deixa pra lá, vou anotar sua placa, assim o senhor vai embora e me deixa em paz.
- Mas eu não quero isso. Eu só achei que o senhor já tinha anotado e vim pedir pra desconsiderar.
- Mas eu não tinha anotado, já disse isso, no entanto posso anotar agora.
- Duvido.
- Duvida que eu anote agora?
- Não, duvido que o senhor não tenha anotado, eu vi pelo espelho.

O guarda suspirou, cansado do papo e fechou seu bloquinho.

- Não anotei sua placa, posso assegurar, e prometo não anotar nada se o senhor for embora agora.
- Não posso.
- Não pode por que?`
- Porque não acredito. Quero ver o que o senhor anotou aí.
- Impossível. Esse bloco é meu, não tenho a obrigação de lhe mostrar.
- Ahá!! Eu sabia! Minha placa está aí, já estou até vendo a multa chegando lá em casa.
- Sua placa não está aqui, eu garanto.
- Então mostra!
- Não mostro!
- Mostra!
- Não mostro!
- Então vai me multar, tenho certeza. Eu vi o senhor anotando.
- Pela última vez, eu não estava anotando a sua placa e se o senhor continuar a me encher, vou prendê-lo por desacato.
- Mas eu não estou lhe desacatando, só quero ver o que o senhor anotou aí no seu bloquinho.
- Mas vá ser fofoqueiro assim no inferno, quer dizer que o senhor passa lá na esquina, me vê escrevendo e volta só pra saber o que eu estava escrevendo?
- Peraí, o senhor disse escrevendo?
- Escrevendo, anotando, tudo é a mesma coisa.
- Não, não é não, escrever é um ato de inspiração, de talento, anotar é burocrático. Escritores, jornalistas escrevem, guardas anotam.
- Que preconceito! O senhor deve ser jornalista mesmo, então só porque sou policial não posso escrever?
- Viu? Acertei. O senhor estava escrevendo, não anotando.
- Vá para o inferno com essa confusão.
- Vou, mas só depois de o senhor me mostrar esse bloquinho.
- Tá bom, mas é só uma poesia. Sabe como é, não sou escritor, sou só um guarda. Acho que está ruim.
- Que é isso, homem? Poeta não tem profissão, deixa eu ver.
- Mas não vá ser muito crítico hein, aqui faz muito barulho, a gente não tem sossego, não pode se concentrar direito.

Durante alguns minutos, o motorista nada disse: olhos fixos no bloquinho. Depois fitou o horizonte, o engarrafamento à sua frente, o fim de tarde, o movimento das pessoas e finalmente uma lágrima rolou pelo seu rosto. Enxugou os olhos com as mãos rapidamente e se voltou para o policial que sorria.

- O senhor gostou?
- É lindo.
- Pode ficar então.
- Mas e o seu bloquinho?
- Pode deixar, tenho outros.
- E a sua poesia?
- Também tenho muitas.
- O senhor é um artista.
- Obrigada, mas é melhor o senhor ir embora, preciso trabalhar.
- Claro, desculpe atrapalhar, bom dia e , ah, obrigado por não me multar.

Fez a volta na esquina e se deparou como o sinal, que estava fechado novamente. Percebeu então que tinha perdido a pressa. Releu a poesia até alguém buzinar para lhe lembrar que o estava na hora de andar. Atravessou cruzamento e, pelo espelho, viu o guarda tirar um novo bloquinho do bolso e recomeçar a escrever. Dessa vez, ele sabia, ninguém tinha avançado o sinal.




Gisela Cesario

2 Comments:

At 6:09 AM, Anonymous Anonymous said...

muito interesante mesmo em meio ao caos do transito o garda consegui tirar inspiração pra escrever suas poesias ,poesia não precisa rimar ,não tem idade ,nem genero ,esse artigo por si próprio é uma das poesias mais interessantes das quais ja tive a oprtunidade de ler parabens para que a escreveu

 
At 6:16 AM, Anonymous Anonymous said...

muito interesante mesmo em meio ao caos do transito o guarda conseguiu tirar inspiração pra escrever suas poesias ,poesia não precisa rimar ,não tem idade ,nem genero ,esse artigo por si próprio é uma das poesias mais interessantes das quais ja tive a oportunidade de ler parabéns para quem a escreveu .

 

Post a Comment

<< Home