nem aí
No fundo ele sabia que um dia isso aconteceria, ele seria mais um. Outro ser humano acometido pela doença mais prejudicial à evolução da humanidade: a indiferença. Fiel militante de um partido de esquerda, já tinha enfrentando a dura realidade da desigualdade social e a não menos dura repressão das cacetadas da polícia durante as muitas manifestações por justiça de que tinha participado. Agora, nem ele sabia porque, nada mais importava. Os sintomas se manifestaram, pela primeira vez, numa entrevista à tv, durante uma passeata. Enquanto os mais exaltados seguravam faixas e gritavam palavras de ordem, ele se limitava a seguir a marcha, resignadamente. Era uma vítima fácil para a repórter iniciante.
- O que o senhor está achando dessa passeata? - perguntou a animada jornalista.
- É, está indo – respondeu cabisbaixo.
- O que efetivamente vocês pretendem com isso? – tentou provocar.
- Olha, moça, tem uma faixa lá na frente com todas as reivindicações escritas bonitinho, é só filmar lá. – Sua voz saía com dificuldade, arrancada das profundezas do peito.
Inconformada, a jornalista tentou argumentar.
- Mas o senhor não é o João da Silva, o líder desse movimento?
- Eu mesmo, minha filha. – suspirou.
- Então, não tem a nada a dizer?
- Já disse, filma lá na frente. – E apontou com visível esforço.
- Mas o senhor não quer expor a sua opinião? O que o senhor acha da reforma agrária, por exemplo? – a moça pensou que ele não poderia se calar diante de um tema tão pulsante.
- É boa para uns e ruim para outros.
- Sim, continue.
- Já terminei, só acho isso.
- Mas o senhor não pode achar só isso. A situação do Brasil não o incomoda?
- Foi tempo – limitou-se a dizer.
- E os sem-teto? E a impunidade? E a pena de morte?
- Olha, me desculpe. Quer saber o que eu acho mesmo?
- Claro! Fale!
- Acho que não é da minha conta.
A repórter revirava os olhos de raiva, possuída pela indignação.
- Como não é da sua conta? O senhor sempre lutou pelos menos favorecidos, sempre se opôs à minoria que impõe regras!
- Isso é a senhora que está dizendo.
Pega de surpresa, a moça tratou de desfazer o mal-entendido.
- Não me comprometa. Eu não tenho nada a ver com isso.
- Muito menos eu.
- Mas o senhor é o líder.
- Me escolheram, fazer o quê?
- Não pode ser.
- Tanto pode como foi. Imagine a senhora, ou a senhorita, se essa multidão toda aí, nervosos do jeito que estão, cismassem que a líder era a senhorita. Ia encarar, ia?
- Eu? Bom, eu? Comigo isso não ia acontecer nunca, eles nem me conhecem.
- E a mim? Conhecem? Eu mesmo não sei quem eu sou. Não sei o que faço aqui. A senhorita, pelo menos, vive aparecendo na TV.
- Mas isso não tem nada a ver. Eu nunca defendi nada, nunca me posicionei politicamente, não tem porque agora eu virar líder.
- Pois eu acho ideal, tudo tem sua primeira vez. – dizendo isso, passou- lhe a faixa de comandante do movimento.
Foi um ato tão repentino que ela não teve como reagir. Estava abobalhada.
- O senhor não pode fazer isso, e a sua reputação? – disse, observando como a faixa lhe caía.
- Eu não sou ninguém, minha filha, a senhorita é que devia se preocupar com a sua reputação, agora a senhorita é quem manda.
- Mas e o senhor? O que senhor acha que vai acontecer com essa gente toda?
- Sei lá.
- E a pobreza?
- Tanto faz.
- E a desigualdade?
- Por mim.
- E a luta das classes.
- ....
Dizendo isso, ou melhor, não dizendo, João da Silva dormiu. Ali mesmo, de pé. Diante das câmeras, da repórter, de tudo. Tentaram lhe sacudir, mas não houve quem conseguisse acordar. Seu cansaço era enorme. Durante anos tinha sido o João da Silva. Agora era sua vez de ser João Ninguém.
Longe nos seus sonhos, ainda ouvia um zum zum zum perturbador: a repórter tentando dar explicações a uma multidão de revoltados.
- Mas eu não sou quem vocês estão pensando!
Gisela Cesario
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home