sexta-feira, setembro 30, 2005

músicas tristes

Todo dia a mesma coisa, chegava em casa e ouvia aquele som vindo do apartamento do vizinho. Cada dia uma música mais triste que a outra. “ Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa...Como reclamar com aquele vizinho já tão infeliz? Como dizer que ouvisse outro tipo de som?..Faça não, pode ser a gota d’água. Um dia foi o cúmulo, chegou em casa no meio da madrugada e ouviu gritos através da porta..Meu vizinho do lado se matou de solidão, ligou o gás o coitado..o ultimo gás do bujão.. Foi a gota d’água, quer dizer, foi o que bastou. Decidiu ir bater na porta do sujeito. Será que ele tinha se suicidado? Ora, não é que o cara abriu a porta com a cara mais tranqüila do mundo? Sim, boa noite? Desculpe incomodar, eu pensei. Sim, continue, pensou? Nada, desculpe, boa noite. Que loucura, que sujeito maluco! Então ele ouvia aqueles hinos de depressão com a cara mais normal do mundo? Que cara estranho! Não parecia triste, não tinha tipo de suicida, tinha boa aparência, cara de gente bem...quem diria? Mas não saia nunca, vivia ouvindo aquelas músicas.Não chegava a incomodar. Não. Até que esse não era o problema. Só dava para ouvir o som no corredor. As portas dos apartamentos eram distantes e grossas o suficiente para abafar quase totalmente o barulho quando se estava fechado em casa. Mas era o ingresso em casa, sempre sob a trilha sonora fúnebre que incomodava, e incomodava a todos.
Uma quarta feira dessas um vizinho veio comentar com ele, o vizinho que morava no outro apartamento do corredor. Estava com uma cara péssima. Ontem eu cheguei ao som de “meu mundo caiu”. Ele riu e lembrou. Comigo foi um bolero . Não pode mais isso! comentou o outro. Fazer o quê? Precisamos falar com esse sujeito. Ele está acabando com as nossas noites. Chegamos em casa felizes da vida, despreocupados e o cara vem com meu mundo caiu? Não dá, não há alegria que resista! Tem razão – concordou o primeiro vizinho. Mas o que você sugere? Uma vez fui lá, pensei que o cara tinha se matado de tão triste que era o som, mas o desgraçado estava bem, só faltou rir na minha cara. Disse até boa noite. Fez isso? Desgraçado!Cretino! - bradou o outro. Pois é - conformou o primeiro. Já sei, tenho um plano. Um plano?
O que se seguiu depois foi um verdadeiro show de tristeza. Nunca se deve tentar chatear um chato, regra universal do manual dos chatos. Mas os vizinhos não deviam conhecer essa obra da literatura, pois, para competir com o vizinho inconveniente passaram a ficar até altas horas da noite ouvindo as musicas mais infelizes do universo, e cada vez num volume mais alto. Trocavam confidências pelo interfone. E ai, pegou o que hoje? “ Como sou infeliz” do Luiz melodia, seguida de “Barracão”, com Dona Ivone Lara...Porra, pegou pesado. Tô indo de Ângela Rorô! Beleza, cara, beleza, vamos matar a pau...
Envenenados por seu próprio veneno, os vizinhos começaram a se tornar estranhamente tristes. Nem se cumprimentavam direito no elevador. Bom dia...Bom dia? Onde? Ah,,, Tem razão, que dia lindo...- e o choro começava. Mas não pareciam perceber, continuavam na paranóia. Cada dia uma música mais triste. Nem se interfonavam mais, bastava ouvir o primeiro acorde de um campeão de depressão e um já sabia que o outro tinha chegado em casa. O vizinho triste perdia de goleada.
Até que uma noite, o primeiro vizinho do vizinho triste, o do início da história, dormiu ao som da ave maria de shubbert, sinal de tortura absoluta. Quando acordou, não foi ao silêncio. Foi com os gritos de Ivete Sangalo. E vai rolar a festa, vai rolar...a festa no gueto...Que porra é essa? O som estava muito mais alto do que o normal. Ouvia-se tudo muito bem com clareza, mesmo com portas e janelas fechadas. Além disso, há anos não sabia o que era uma música alegre. Incomodado, abriu a porta para ver de onde vinha o som...Nesse instante, a música mudou subitamente. Foi o Latino que passou a berrar. Hoje é festa lá no meu apê, pode aparecer..Que porra é essa? Vai rolar bundalelelê...Andou, passos firmes, até o apartamento do vizinho triste, era de lá que vinha esse insuportável hino de alegria...Pode aparecer....Tocou a campainha. Uma. Duas vezes. Nada. No meu quarto, tá rolando até orgia...Bateu na porta. Esmurrou a droga da porta. Hoje é festa... Se controlou. Tentou esfriar a cabeça. Bateu de novo. Tem birita até amanhecer...Não ,era demais. Meteu o pé na porta e arrebentou aquela joça, ia acabar com aquela festa no apê...Mas, peraí...Festa? Que festa? A cena que encontrou na sala era, no mínimo, difícil de se descrever. E nem um pouco festiva. O vizinho jazia, sim jazia, estava morto, no sofá. À sua volta, apenas sangue, mais sangue, muito sangue, uma gilete, o aparelho de CD berrando e um bilhete mudo. No bilhete, apenas uma palavra, “Adeus”. Não era uma despedida, era um pedido, ele sabia, o último desejo do morto. Sentiu uma raiva imensa tomar conta de si. Arrancou o cd do latino do aparelhou e quebrou em mil pedaços. Fez a mesma coisa com a da Ivete Sangalo. Quando a polícia finalmente chegou, trazida pelo outro vizinho, o apartamento parecia cantar: Eu vou partir...vou levar...e onde eu for... eu vou sentir....
Gisela Cesario