terça-feira, abril 26, 2005

nem aí


No fundo ele sabia que um dia isso aconteceria, ele seria mais um. Outro ser humano acometido pela doença mais prejudicial à evolução da humanidade: a indiferença. Fiel militante de um partido de esquerda, já tinha enfrentando a dura realidade da desigualdade social e a não menos dura repressão das cacetadas da polícia durante as muitas manifestações por justiça de que tinha participado. Agora, nem ele sabia porque, nada mais importava. Os sintomas se manifestaram, pela primeira vez, numa entrevista à tv, durante uma passeata. Enquanto os mais exaltados seguravam faixas e gritavam palavras de ordem, ele se limitava a seguir a marcha, resignadamente. Era uma vítima fácil para a repórter iniciante.
- O que o senhor está achando dessa passeata? - perguntou a animada jornalista.
- É, está indo – respondeu cabisbaixo.
- O que efetivamente vocês pretendem com isso? – tentou provocar.
- Olha, moça, tem uma faixa lá na frente com todas as reivindicações escritas bonitinho, é só filmar lá. – Sua voz saía com dificuldade, arrancada das profundezas do peito.
Inconformada, a jornalista tentou argumentar.
- Mas o senhor não é o João da Silva, o líder desse movimento?
- Eu mesmo, minha filha. – suspirou.
- Então, não tem a nada a dizer?
- Já disse, filma lá na frente. – E apontou com visível esforço.
- Mas o senhor não quer expor a sua opinião? O que o senhor acha da reforma agrária, por exemplo? – a moça pensou que ele não poderia se calar diante de um tema tão pulsante.
- É boa para uns e ruim para outros.
- Sim, continue.
- Já terminei, só acho isso.
- Mas o senhor não pode achar só isso. A situação do Brasil não o incomoda?
- Foi tempo – limitou-se a dizer.
- E os sem-teto? E a impunidade? E a pena de morte?
- Olha, me desculpe. Quer saber o que eu acho mesmo?
- Claro! Fale!
- Acho que não é da minha conta.
A repórter revirava os olhos de raiva, possuída pela indignação.
- Como não é da sua conta? O senhor sempre lutou pelos menos favorecidos, sempre se opôs à minoria que impõe regras!
- Isso é a senhora que está dizendo.
Pega de surpresa, a moça tratou de desfazer o mal-entendido.
- Não me comprometa. Eu não tenho nada a ver com isso.
- Muito menos eu.
- Mas o senhor é o líder.
- Me escolheram, fazer o quê?
- Não pode ser.
- Tanto pode como foi. Imagine a senhora, ou a senhorita, se essa multidão toda aí, nervosos do jeito que estão, cismassem que a líder era a senhorita. Ia encarar, ia?
- Eu? Bom, eu? Comigo isso não ia acontecer nunca, eles nem me conhecem.
- E a mim? Conhecem? Eu mesmo não sei quem eu sou. Não sei o que faço aqui. A senhorita, pelo menos, vive aparecendo na TV.
- Mas isso não tem nada a ver. Eu nunca defendi nada, nunca me posicionei politicamente, não tem porque agora eu virar líder.
- Pois eu acho ideal, tudo tem sua primeira vez. – dizendo isso, passou- lhe a faixa de comandante do movimento.
Foi um ato tão repentino que ela não teve como reagir. Estava abobalhada.
- O senhor não pode fazer isso, e a sua reputação? – disse, observando como a faixa lhe caía.
- Eu não sou ninguém, minha filha, a senhorita é que devia se preocupar com a sua reputação, agora a senhorita é quem manda.
- Mas e o senhor? O que senhor acha que vai acontecer com essa gente toda?
- Sei lá.
- E a pobreza?
- Tanto faz.
- E a desigualdade?
- Por mim.
- E a luta das classes.
- ....
Dizendo isso, ou melhor, não dizendo, João da Silva dormiu. Ali mesmo, de pé. Diante das câmeras, da repórter, de tudo. Tentaram lhe sacudir, mas não houve quem conseguisse acordar. Seu cansaço era enorme. Durante anos tinha sido o João da Silva. Agora era sua vez de ser João Ninguém.
Longe nos seus sonhos, ainda ouvia um zum zum zum perturbador: a repórter tentando dar explicações a uma multidão de revoltados.

- Mas eu não sou quem vocês estão pensando!

Gisela Cesario

terça-feira, abril 19, 2005

xis

Era uma vez uma pessoa que não conseguia guardar imagens. Ela, essa pessoa, só guardava palavras. Como assim? Por exemplo, se essa pessoa, vamos chamá-la de X, se X fosse a uma reunião, iria olhar fixamente para todos os participantes. X argumentaria, exporia suas opiniões, defenderia suas teses, tudo isso olhando bem nos olhos de todas as pessoas que estivessem presentes. X poderia até reparar nos detalhes, perceber que a gravata de alguém já estava velha, que os sapatos do outro eram de um couro importado, nenhum detalhe escaparia aos astutos olhos de X. Esses detalhes seriam processados na mente de X para descobrir a personalidade dos donos dos detalhes, quem era pobre, rico, gay, esquizofrênico. Quando saía de um evento como esse, X estava sempre acabado ou acabada, já que X é uma pessoa sem sexo. Fechava os olhos e pensava: “Sim, tenho tudo que aconteceu guardado na memória”. No entanto, em poucos minutos, as imagens das pessoas iam se dissolvendo na mente de X. Isso mesmo, se dissolvendo, se derretendo, como um boneco de neve no sol, ia se tornando impossível distinguir as feições, o que era nariz, o que era orelha, tudo ia virando um grande borrão. As gravatas perdiam as cores, tremulavam as estampas como numa tv mal sintonizada, os sapatos, que sapatos? Não seriam botas? Ou será que eram tênis? X não sabia mais. Que grande momento de tensão era esse pra X. Ele ou ela não sabia mais, não poderia reconhecer nenhum dos participantes na rua. De olhos cerrados, mãos acariciando a testa nervosamente, X puxava pela memória. E vinham frases. “ Eu não disse que era impossível, disse que era improvável”. “O dia de hoje foi muito produtivo”. “Concordo plenamente, X está certo”. “Participar dessa reunião é uma grande honra para mim.” Todas as palavras estavam ali, numa seqüência perfeita, que X poderia reproduzir sem pular uma só interjeição que fosse. Uma vez X realmente fez isso. Havia saído com uma pessoa do sexo oposto ao dele ou dela e os murmúrios, os uivos de paixão, as palavrinhas obscenas não lhe saíam da cabeça. Não agüentando mais ser torturado por tantas palavras sem nenhuma imagem, X sentou pesadamente em sua cadeira e com toda sofreguidão foi reproduzindo todos os diálogos da noite em um bloco de papel. Do boa-noite da chegada ao boa noite da saída. Eram mais de 100 pequenas páginas. Quantas bobagens, quantas bobagens haviam sido ditas. X sempre ficava impressionado com o número de bobagens que as pessoas diziam. Morria de vergonha das suas bobagens. Seu único alívio era que as pessoas não tinham uma memória com a de X. Elas não iam lembrar de todas as palavras. Foi então que X teceu uma teoria. A memória do ser humano é parecida com a memória de um computador. As imagens ocupam muito espaço em bytes. Já as palavras só ocupam um espaço pequenino, um grande texto, um livro ocupa menos espaço que uma foto três por quatro. As pessoas guardavam o rosto de X, assim não sobrava muito lugar para guardar o que X dizia. Já ele ( ou ela) não possuía esse dispositivo. Se a memória de X fosse uma memória de computador, seria uma com defeito. Incapaz de reter imagens. Somente arquivos texto. Cansado(a), X jogou a cabeça para trás, tentou em vão lembrar do seu próprio rosto. Não conseguiu. Recordou apenas e instantaneamente suas últimas palavras. “A vida dos outros é um filme, a minha é um livro, daqueles sem figuras”. Pensando nisso,foi escrever sobre uma pessoa chamada X.

Gisela Cesario

segunda-feira, abril 11, 2005

Poeta

Era uma sexta-feira, dessas em que parece que todos têm alguma coisa muito importante para fazer no final de semana e não podem se atrasar nenhum minuto.Com o motorista dessa história não era diferente. Apesar de não ter nenhum compromisso especial, ele estava contaminado pelo espírito de sexta-feira que engarrafa o trânsito e faz com que todos os motoristas se tornem ainda mais impacientes do que o normal.
Ele avançou um sinal numa esquina movimentada do Leblon. Não avançou assim, na cara dura. Foi aquela coisa de o sinal ficar amarelo e logo vermelho na hora em que justamente o seu carro vai passar e aí você olha e vê que os carros do cruzamento ainda estão parados e lógico que eles vão esperar você passar e depois você finge que não viu o sinal mudar de amarelo para vermelho e pronto, você avança o sinal, mas assim, discretamente. E qual é a próxima coisa que o motorista dessa história faz? Claro, aquilo que todo mundo faria. Olha pelo espelho para ver se tem guarda. Nunca tem. Ou melhor, dificilmente em. Ou melhor ainda, nesse dia, como em todos os dias em que a última coisa você quer é conversar com um guarda, nesse dia, claro, tinha um guarda. Novamente ele fez o que provavelmente você também faria. O retorno. Voltou com cara de menino que fez bagunça na aula e está arrependido e foi falar com o guarda que anotava em seu bloquinho.

- Seu Guarda, por favor, posso falar com o senhor um minutinho? (disse isso respeitosamente, apesar de o guarda aparentar ter no máximo 30 anos)
- Sim – O guarda pareceu assustado, como se não esperasse aquela abordagem.
- Olha só, eu vi que o senhor me anotou porque eu avancei o sinal mas eu quero explicar que..
- Eu não anotei o senhor – interrompeu o guarda.
- Bom, eu vi o senhor anotando.
- Sim, realmente eu estava anotando, mas não era a placa do seu carro.
- Não?
- Não.
- O que era então? – perguntou, realmente curioso.
- O senhor não acha que está querendo saber demais?
- Não, desculpe, é que eu avancei o sinal, mas foi porque mudou muito rápido de amarelo pra vermelho e eu não vi porque estava com pressa porque estou atrasado, o senhor sabe...
- Sei, se está com pressa, por que está aqui parado conversando comigo? Passou a pressa?
- Não, continuo com pressa, mas é que como vi o senhor anotando a minha placa...
- Olha, só se o senhor fosse o super-homem poderia ter visto o que eu estava anotando aqui na esquina, no meu bloquinho, lá do seu espelho retrovisor do outro lado da rua.
- Bom, claro que isso eu não vi, mas imaginei que fosse a minha placa porque eu avancei o sinal.
- O senhor avançou o sinal?
- Sim, eu...

Imediatamente o guarda começou a olhar a placa do carro dele e copiá-la no bloquinho.
- O que o senhor está fazendo?
- Estou anotando a sua placa, o senhor acabou de dizer que avançou o sinal, assim posso mandar uma multa pra sua residência.
- Não, pelo amor de Deus, vamos conversar.
- Conversar? Mas o senhor não estava com pressa? Se parou aqui só pra me dizer que avançou o sinal é porque está querendo uma multa, não é?
- Eu não avancei o sinal.
- Agora o senhor está se contradizendo.
- Quero dizer eu não avancei o sinal de propósito.
- Ah, foi um avanço de sinal culposo.
- O quê?
- Não intencional, assim como tem homicídio culposo e doloso...bom, deixa pra lá, vou anotar sua placa, assim o senhor vai embora e me deixa em paz.
- Mas eu não quero isso. Eu só achei que o senhor já tinha anotado e vim pedir pra desconsiderar.
- Mas eu não tinha anotado, já disse isso, no entanto posso anotar agora.
- Duvido.
- Duvida que eu anote agora?
- Não, duvido que o senhor não tenha anotado, eu vi pelo espelho.

O guarda suspirou, cansado do papo e fechou seu bloquinho.

- Não anotei sua placa, posso assegurar, e prometo não anotar nada se o senhor for embora agora.
- Não posso.
- Não pode por que?`
- Porque não acredito. Quero ver o que o senhor anotou aí.
- Impossível. Esse bloco é meu, não tenho a obrigação de lhe mostrar.
- Ahá!! Eu sabia! Minha placa está aí, já estou até vendo a multa chegando lá em casa.
- Sua placa não está aqui, eu garanto.
- Então mostra!
- Não mostro!
- Mostra!
- Não mostro!
- Então vai me multar, tenho certeza. Eu vi o senhor anotando.
- Pela última vez, eu não estava anotando a sua placa e se o senhor continuar a me encher, vou prendê-lo por desacato.
- Mas eu não estou lhe desacatando, só quero ver o que o senhor anotou aí no seu bloquinho.
- Mas vá ser fofoqueiro assim no inferno, quer dizer que o senhor passa lá na esquina, me vê escrevendo e volta só pra saber o que eu estava escrevendo?
- Peraí, o senhor disse escrevendo?
- Escrevendo, anotando, tudo é a mesma coisa.
- Não, não é não, escrever é um ato de inspiração, de talento, anotar é burocrático. Escritores, jornalistas escrevem, guardas anotam.
- Que preconceito! O senhor deve ser jornalista mesmo, então só porque sou policial não posso escrever?
- Viu? Acertei. O senhor estava escrevendo, não anotando.
- Vá para o inferno com essa confusão.
- Vou, mas só depois de o senhor me mostrar esse bloquinho.
- Tá bom, mas é só uma poesia. Sabe como é, não sou escritor, sou só um guarda. Acho que está ruim.
- Que é isso, homem? Poeta não tem profissão, deixa eu ver.
- Mas não vá ser muito crítico hein, aqui faz muito barulho, a gente não tem sossego, não pode se concentrar direito.

Durante alguns minutos, o motorista nada disse: olhos fixos no bloquinho. Depois fitou o horizonte, o engarrafamento à sua frente, o fim de tarde, o movimento das pessoas e finalmente uma lágrima rolou pelo seu rosto. Enxugou os olhos com as mãos rapidamente e se voltou para o policial que sorria.

- O senhor gostou?
- É lindo.
- Pode ficar então.
- Mas e o seu bloquinho?
- Pode deixar, tenho outros.
- E a sua poesia?
- Também tenho muitas.
- O senhor é um artista.
- Obrigada, mas é melhor o senhor ir embora, preciso trabalhar.
- Claro, desculpe atrapalhar, bom dia e , ah, obrigado por não me multar.

Fez a volta na esquina e se deparou como o sinal, que estava fechado novamente. Percebeu então que tinha perdido a pressa. Releu a poesia até alguém buzinar para lhe lembrar que o estava na hora de andar. Atravessou cruzamento e, pelo espelho, viu o guarda tirar um novo bloquinho do bolso e recomeçar a escrever. Dessa vez, ele sabia, ninguém tinha avançado o sinal.




Gisela Cesario

sábado, abril 09, 2005

Suícidio

Estava pendurada em uma ponte. Só três dedos a seguravam no frio metal. Chovia e ventava como normalmente acontece no inverno carioca. Era a ponte rio-niterói. Seu corpo já havia desistido da vida e a maior parte da sua mente também. Apenas aqueles três dedos e alguns neurônios reivindicavam o que era seu por direito: a vida.

Vinha passando alguém. Convenhamos, não é normal vir passando alguém a pé , de noite, pela ponte rio-niterói. Então, pensou a suicida, seria um enviado de Deus. Talvez até fosse, mas o que ele era mesmo era um funcionário de manutenção da ponte. O carro parado naquele ponto da ponte tinha chamado atenção e ele fora mandado até ali para ver o que estava acontecendo.

Olhou para aquela mulher, corpo dependurado, olhos suplicantes, e perguntou:

- Senhora, seu carro está atrapalhando o trânsito. Posso ajudar?
- Pode, me salve.

Ele olhou a mulher pendurada. Os olhos dela estavam vermelhos, de choro, medo, terror. De esperança? Ele também teve medo.

- Como?
- Me salve. Me puxe. Me ajude a não morrer.
- A senhora está se matando?
- O que você acha? Estou aqui pendurada na ponte no meio da noite. Pensa que estou praticando bungee-jumpee?
- A senhora poderia me dar as chaves?
- Que chaves?
- As chaves do seu carro, para eu poder tirá-lo da pista enquanto a senhora faz o que tem que fazer.
- Eu vou me matar.
- Sim, estou pedindo que antes a senhora me dê as chaves...
- Insensível, desgraçado! Não vê que é a minha vida que está em perigo?
- A tranqüilidade do trânsito também.
- Mas eu sou um ser humano!
- Sei, milhões de seres humanos como a senhora estão nas ruas: roubando, pedindo esmolas, cometendo atrocidades... A senhora deve estar desesperada, não está?
- Estou- disse a mulher, sentindo uma incrível dor nos três dedos que a seguravam e tendo os olhos cheios de lágrimas.
- Pois é, como a senhora, há aos montes. Mas não pense que só porque tem um carro é mais importante que aqueles que não têm. O trânsito na ponte tem que fluir. Já pensou se cada um que tivesse um problema resolvesse estacionar aqui?
- Mas, eu não sou qualquer um.
- É? Qual a diferença? Talvez só o seu o carro parado atravancando o trânsito. Por favor, me dê as chaves...
- Seu imbecil, você não vê que se eu largar essa ponte eu morro, caio com chave e tudo?
- Não tem uma maneira de a senhora pegar as chaves?
- Tem! Me ajude a subir e eu pego.

Com visível esforço e enorme má vontade, ajudou a mulher a subir. Ela pareceu aliviada e indecisa ao sair daquela situação. Estava, assim, como se diz, sem jeito mesmo.

- Obrigada, não precisava.
- Claro que precisava. E as chaves?
- Ah, as chaves – fingiu procurar as chaves do carro num bolso que não existia em seu vestido. Fez uma cara de desculpe e disse:
- Acho que caíram lá embaixo.
- O quê? – O horror do homem era espantoso. A vida nada significava para ele. Seu único objetivo era o trabalho bem feito, o trânsito livre, as malditas chaves do carro.
- Vá pegar- a mulher disse isso e empurrou o pobre coitado ponte abaixo.

Seu corpo foi caindo de uma maneira mais lenta que o normal. Ela pensou que os corpos caíssem mais depressa. Mas não, era devagar, dava para ver a expressão de espanto do coitado. Primeiro o espanto, depois a decepção, depois o torpor. Não era um homem de ódios.

Ela, por sua vez, queria vingança. E achou uma maneira de se vingar de tudo. Da futilidade da vida. Dos olhares insensíveis. Das ambições desmedidas. Não se jogou. Fez muito pior. Simplesmente saiu andando. Deixando o carro atravancado na ponte. Agora tinha consciência que existia algo pior que a morte de um desconhecido. Atrapalhar o trânsito.

Gisela Cesario