sexta-feira, setembro 09, 2011

Aquele jogo

Passou pelo porteiro com ar indiferente, o que, por si só, já era diferente, pois sempre se cumprimentavam como amigos de escola. O porteiro achou que era brincadeira:

-Eta, flamengista, perdendo daquele jeito ainda é orgulhoso, é?

-O quê?- Respondeu com o ar mais esnobe desse mundo, como se ele fosse o rei da Inglaterra e o seu Zé fosse o seu Zé mesmo.

- Ô Doutor, o jogo foi feio, mas num precisa ficar assim, quem sabe não é melhor pro flamengo ir logo pra segundona, hahaha?

- Segundona? Flamengo? Eu não entendo o que o senhor está dizendo. Está falando comigo?

Seu Zé finalmente começou a levar o negócio a sério. Será que o doutor Nelson estava tendo alguma coisa?

- O senhor está bem? Tá tudo bem? Olha, esse negócio de futebol é bobagem, o senhor não ta chateado de verdade, né?

- Futebol? O que é futebol?

- Hahahaha, ah, doutor Nelson, vá...- quando ia completar a frase percebeu que a cara do Dr Nelson estava séria, ele parecia realmente não saber o que era futebol ou então fingia melhor que o diabo. Nisso, alguma coisa fez o doutor se mexer.

- Ah, futebol, aquele jogo que existia há muitos anos, ora, seu Zé, o senhor é muito jovem pra lembrar disso, não é?

- Tá de sacanagem...-Seu Zé não se agüentou e ao mesmo tempo percebeu que tinha ido longe demais.

- Veja bem como o senhor fala comigo, senhor Zé, não sei que problemas o senhor anda enfrentando, mas..-Antes de completar a frase, ambos se viram para o síndico, que vem passando pela portaria, vascaíno doente, pelo que seu Zé sabia, finalmente ele tinha pra quem apelar.

- Dr. Cláudio, olha aqui Dr Nelson dizendo que futebol não existe. Num tô dizendo que esses flamenguistas são ruim do juízo.

- Futebol? – Respondeu o Dr. Claudio para o total desespero do Seu Zé, será que os dois tinham combinado aquela sacanagem? Era impossível, um era flamenguista, outro vascaíno e ele mesmo era botafoguense.

- Futebol doutor, aquele jogo que tem gol, lembra, gol do Vasco, do botafogo...

- Vasco? Botafogo? Nossa, Seu Zé, essa o senhor tirou do fundo do baú, esse não era aquele jogo que os caras ficavam correndo atrás de uma bola num gramado verde e os torcedores iam fantasiados e ficavam gritando ou tocando corneta que nem uns malucos? O senhor andou conversando com seu bisavô, foi? Isso não existe mais há séculos.

- Dr Claúdio- agora seu Zé estava decidido- eu não sei o que está acontecendo, mas tô ficando nervoso de verdade. Cês tão de armação, não tão?

- Senhor José – respondeu o síndico, bem sério dessa vez -Por que o senhor não tira o resto do dia de folga? É melhor, porque se o senhor me desrespeitar de novo...

-Desrespeitar? Mas eu só falei de futebol.

- Pode ir, senhor José- Enquanto falava, anotava alguma coisa no bloquinho da portaria e puxava o crachá do porteiro com ar irritado. Aquele não parecia o síndico que Seu Zé conhecia.

Sem opção, ele saiu andando, ainda torcendo pra ouvir umas gargalhadas que confirmassem a brincadeira dos dois, ele nem ficaria ofendido, tudo bem, esses caras...Mas não, parecia sério mesmo.

Então, se futebol não existia, ele não era mais amigo do Dr. Nelson nem do síndico, ele não teria nada pra falar quando um deles passasse pela portaria, ele não ia precisar mais da televisãozinha que a dona Lourdes comprou de presente pra ele assistir aos jogos na copa do mundo na portaria. Nem haveria mais copa do mundo! Não, era impossível, ele não podia estar ficando maluco, o futebol não tinha acabado e só ele não sabia.

Decidiu encher a cara, tava de folga mesmo, ia pra um botequim qualquer e beber até de noite. Resolveu ir pro bar do Arnaldo, flamenguista de chorar, que tinha até imagem de São Judas Tadeu e São Jorge com vela acesa pro flamengo. Não ia falar de futebol, só ia pedir pra pendurar a despesa, o Arnaldo, apesar de flamenguista, era gente boa.

Ao chegar no bar, pensou que ia ter um infarto. Não havia uma bandeira sequer rubro negra, a TV passava um noticiário sobre um terremoto no Japão, o bar parecia mais limpo, não tinha ninguém bêbado no balcão, ou, se tinha, eles disfarçavam bem. O próprio Arnaldo parecia outro, estava barbeado, com uma camisa branca. Branca!!! E passava um pano limpo. Isso mesmo, limpo, no balcão. Tentou ignorar tudo, jogou os braços no balcão e gritou.

- Naldo, desce uma quente e uma gelada pra temperar que hoje tá tudo errado. Ele costumava pedir cachaça com cerveja quando a coisa ia mal.

- Seu Zé, respondeu um Arnaldo saído de um filme americano, não entendi o pedido. E o senhor poderia pagar no caixa antes de consumir?

- Ah, não, pagar no caixa antes de consumir é demais, tu enlouqueceu compadre? Isso aqui é um botequim ou é uma boate gay?

- Senhor José, veio o Arnaldo andando sério, vou ter de pedir para o senhor se retirar. O senhor está ofendendo a clientela.

Nem quis olhar, nem quis saber, que se danasse, ele tinha uma garrafa de caninha em casa e ia beber, a Matilde, sua mulher, que se danasse também. Que danado de dia maluco! Amanhã ia ser outra coisa, enquanto isso, ele ia encher a cara, pronto.

O problema foi que, antes de chegar em casa, deu de cara com a Matilde, ela mesmo, sua esposa há mais de dez anos, num balcão de bar com outras duas mulheres falando de novela. Discutiam, batiam no balcão como se fosse a coisa mais importante do mundo.

- Ela é mãe dele, sim, eles só descobriram agora que fizeram o DNA.

- Não pode ser- respondia outra mulher ensandecida.

Seu Zé até queria ir direto pra casa, mas suas pernas não respondiam, ele ficou parado ali olhando aquela aberração. A tendinha, nem era bar aquilo, só tinha mulher, todas meio bêbadas, inclusive a sua Matilde, falando de novela. Ele não sabia se ria, chorava ou até se já tinha bebido e esquecido. Foi então que a esposa percebeu sua presença.

- Ô Zé, que foi, homem? Perdeu o trabalho, é? Tá fazendo o que em casa a essa hora? Não vai dizer que veio me vigiar aqui no bar? Tu sabe que quarta feira é meu dia de vir pra cá, falar da minha novela com as minhas colega e tomar minhas cerva, tu num vai encrencar comigo justo hoje, vai?

Aquilo foi demais, Seu Zé não agüentou, sem sair do lugar, teve um crise de choro, o mundo todo, inclusive o mundo dele, estava acabando. Matilde se adiantou.

-Peraí, gente boa, que eu vou conversar aqui com o patrão- falou alto dando uma piscadinha pras amigas enquanto se encaminhava na direção do marido e o levava pra longe da visão do bar.

- Que foi, Zé? – disse baixinho.- Tá acontecendo alguma coisa?

- Matilde – respondeu ele, ainda chorando copiosamente- Você sabe que não existe mais futebol?

- Futebol?

Seu Zé quase berrou de tanto chorar diante de mais uma interrogação daquelas.

- Calma, homem, tá variando? Futebol num existe faz tempo, a gente nem era nascido, por que pensar nisso agora?

- As pessoas, Matilde, as pessoas eram meus amigos. Eu tinha o que falar, eu tinha com quem falar, não importava se era rico, pobre, síndico, advogado, médico, dono de botequim, a gente sempre foi uma coisa só, Matilde. A gente sempre foi torcedor e isso acabava com as nossas diferenças. Eu podia conversar com qualquer pessoa de igual pra igual, eu sempre tinha assunto, todo mundo gostava de falar comigo. E agora, vou falar de quê?

- Ora, Zé, hoje em dia só se fala da novela, mas isso não é muito coisa de homem, sabe como é, homem fica mais na sua, só trabalhando, dizendo que mulher só fala bobagem, briga por besteira de novela, na verdade, quando um homem gosta muito de novela acham até que ele é meio gay, mas se você quiser eu te conto todos os capítulos dessa novela de agora das nove. Olha, o personagem principal, aquele bonitão...

- Chega- disse Zé, interrompendo a esposa- não quero mais nem beber.

- Ah, que bom, não fica bem prum homem de família ficar bêbado no meio do dia, vai voltar pro trabalho?

- Não, Matilde, tô de folga hoje, vou dormir, pode ficar no seu bar, com suas amigas, falando de novela, eu lembro como era bom quando eu também podia fazer isso, ficar enchendo a cara com meus amigos que não falam mais comigo, discutindo um assunto que não existe mais.

- Não fica assim, Zé, vou pra casa com você, você quer?

- Não, deixa, só quero dormir.

Antes do fim da frase do Seu Zé inconsolável, Matilde já estava de volta ao bar, berrando sobre o capítulo final da novela.

Ele entrou em casa, olhou pra cama que ficava na sala mesmo, se jogou de sapato e tudo e dormiu profundamente o sono dos que já não vêem sentido em permanecer acordado.

Despertou muitas horas depois, o sol estava nascendo, Matilde ressonava ao seu lado.

Esticou a mão para encontrar o copo de água que sempre ficava perto da cama e esbarrou numa camisa, uma camisa do seu time, suada ou molhada, velha não era.
Olhou para as paredes e viu a pequena bandeira botafoguense em cima da TV.

Segurou a camisa e, virando pro lado, decidiu dormir de novo, sonho ou realidade, não importava mais, o que ele queria era ir pra um mundo onde o futebol não tivesse acabado.

Gisela Cesario.

sábado, janeiro 29, 2011

Paranóia?

Leonel Leal era paranóico como todo escritor que se preza. Pelo menos, na opinião dele, todo escritor que se prezasse tinha de ser paranóico. Ou isso era paranóia? Era, claro. Porém, Leonel estava se tornando um pouco paranóico demais. Não estamos falando somente de coisas simples como ficar olhando pelo olho mágico para se certificar que não há alguém no corredor ou mandar verificar se há grampos no telefone, muito menos procurar um explosivo no motor do carro antes de sair. Até aí, digamos que tudo bem.

A paranóia de Leonel não afetava sua vida. Ele morava sozinho num conjugado que tinha como únicos móveis sua mesa e cadeira, o colchão ficava no chão, os livros ficavam no chão, até os pratos ficavam no chão. Leonel não confiava em móveis. Nunca confie em algo que junta poeira. Outra máxima dele. Em cima da mesa, uma máquina de escrever e muito papel, instrumentos do seu trabalho. Óbvio que não confiava em computadores, jamais iria criar uma senha, fazer um login. Por incrível que pareça, para os poucos que conheciam Leonel, até aí tudo normal.
Foi hoje que Leonel percebeu que estava exagerando, apesar de já desconfiar, uma vez que ele sempre desconfiava de tudo. O telefone (de fio) tocou. Leonel, como sempre, tirou o fone do gancho e ficou mudo. Dizer alô, jamais. Silêncio também do outro lado. Respiração. Mulher?
Leonel, fala comigo.

Era sua editora. Soraya Serra. Acho que não mencionei, Leonel escrevia para uma revista esotérica. A única revista redonda, em formato de bola de cristal. Chamava-se “Futuro hoje”. Leonel era o único redator ( apesar de ele preferir ser chamado de escritor), o resto eram anúncios e matérias pagas. O Sr. Leal, nome que dava credibilidade às suas colunas, escrevia tudo, desde previsões astrais até estudos teológicos sobre canonização. Claro, também respondia cartas, consultas de leitores. Era sobre isso que sua editora, a impaciente Soraya queria falar.

Leonel, você poderia dizer alô?
Alô.
Tá, que bom, agora sei que você está ouvindo. Antes que você pergunte, não estou no viva voz, não tem mais ninguém na sala e não, essa conversa não está sendo gravada. Ok?
Ok, Soraya, pode falar, estou ouvindo, algum problema? Deve ter algum problema, você nunca me liga.
Realmente, você tem razão, tem um problema, Leonel, a resposta que você escreveu para a leitora, a Dona Clotilde, eu não posso publicar isso.
Por quê?
Porque é impublicável, nunca vi uma previsão tão catastrófica e maluca, já reparei que você estava mais paranóico, mas..
Como assim reparou? Reparou como? Quando?
Ah, Leonel, reparei reparando, pelos seus textos, pela quantidade de vezes que você repete “desconfie de”...
Eu não repito, eu uso meu dicionário de sinônimos, e estou muito desconfiado dessa sua desconfiança de que eu estou muito paranóico.
Leonel, você mandou a Dona Clotilde examinar os bicos do fogão para ver se a empregada não estava tentando matá-la sufocada com gás.
E o que tem isso de mais?
É absurdo. Claro que a empregada dela não quer que ela morra.
Como você sabe? Você conhece a Dona Clotilde? Conhece a empregada?
Não, Sr. Leal, eu conheço você e sei você pode escrever uma resposta melhor.
Está me demitindo?
Meu Deus, claro que não!
Está buscando uma desculpa, um motivo para me demitir, está culpando minha paranóia.
Você está cada vez pior, só estou dizendo...
Está dizendo que estou cada vez pior, se isso não é motivo pra me demitir, não sei o que é.
É só um aviso, sou sua amiga acima de tudo, não gosto de ver tão doente assim.
Não tenho amigos.
Claro que tem, sou sua amiga, você sempre soube que podia confiar em mim.
Quem te disse isso?
Leonel, somente acho que você deveria tirar alguns dias, um mês quem sabe e relaxar num lugar tranqüilo.
Que lugar tranqüilo?
Bom, eu podia te indicar, mas você certamente não iria acreditar, então é melhor você mesmo decidir.
Realmente, eu jamais aceitaria uma indicação sua, não leve a mal, não aceito indicações de ninguém.
Eu sei, amigo, eu te conheço, só quero que você melhore e volte mais calmo.
Tem certeza que não está me demitindo?
Ora, não seja paranóico, ou melhor, não seja ridículo. Por que eu teria medo de dizer que estou te demitindo?
Quem falou em medo? Eu só falei em demissão.
Leonel, eu realmente preciso desligar, é isso, tire um mês de férias, ta bom?
Por que você precisa desligar? Como posso saber que está falando a verdade?
Ora, eu nunca atrasei seu cheque, nunca falhei em promessa alguma, sempre fui sincera com você. Por que iria ser diferente agora?
Desculpe, Soraya, você tem razão, mas é que tudo tem sua primeira vez e eu imaginei....
Tudo bem, desculpado, agora não imagine mais e boas férias.

Pronto. Bateu o telefone. Leonel ficou ouvindo o tam tam tam tam que faz um telefone sem alguém do outro lado.

Olhou à sua volta, o imenso vazio de tudo, olhou sua mesa, sua máquina de escrever. O que iria fazer nas férias? E Soraya, o que ela estaria fazendo agora? Respirou profundamente e balançou a cabeça. Dessa vez, não, Leonel, disse pra si, mesmo, chega de paranóia.

Abriu a porta, saiu sem olhar antes no olho mágico, deu bom dia aos vizinhos e decidir que ia aproveitar um pouco aquele dia de céu tão azul.

Enquanto isso, Soraya tinha um jovem um pouco desconfiado à sua frente, ela estava tentando tranqüiliza-lo, explicando o quão estável seria seu novo emprego, mencionou que o nome dele era perfeito para o cargo: "Fausto Fiel". Ele só tinha que confiar nela.

Gisela Cesario

terça-feira, janeiro 11, 2011

Amor, Sexo e Comidas.

- Eu amo lasanha.
- Como assim?
- Amando, ué’, eu amo comer lasanha.

Estavam os dois amigos em um daqueles bares que servem comidas no mínimo suspeitas, um deles limpava a boca num guardanapo já pegajoso e elogiava cada garfada da massa fumegante e cheia de queijo.

- Você come a lasanha, você não ama a lasanha. Amar é uma coisa, comer é outra. – Alberto era psicólogo e se orgulhava de, bêbado, fazer análises bizarras. Gustavo odiava esse lado do amigo, mas às vezes não tinha como não achar engraçado.
- Cara, você é ridículo. Isso vale pra mulher, não pras massas.
- Nem sempre, veja bem o meu raciocínio, o que você faz com uma mulher com quem você gosta só de transar?
- Como. Não era isso que você queria ouvir? E como a lasanha também! Alberto, dá um tempo, comer é uma gíria, eu não como literalmente uma mulher, não sou canibal.
- Você diria que está apaixonado por essa lasanha?
- Dentro do possível, sim.
- Dentro do possível, não, toda paixão ou amor tem que ter um quê de impossibilidade, está apaixonado ou não?
- Estou, mas de uma forma geral, não vou leva-la ao cinema nem nada, só come-la.
- Está vendo a semelhança? Eu sei muito bem que comida não é gente.
- Que bom – disse Gustavo com a boca cheia.
- Meu ponto é que sexo é um instinto tanto quanto a fome, a gente faz porque precisa não porque gosta.
- Mas a gente gosta.
- Não, isso não é gostar. É necessidade. Prazer é uma coisa que você obtém quando faz o que gosta embora não precise fazer. Alívio é quando você satisfaz uma necessidade. Comer quando se tem fome proporciona alívio, não prazer.
- Veja bem, Alberto – Gustavo sempre acabava se interessando pelas maluquices do amigo – Alívio seria se eu comesse pão com manteiga e água, eu estou matando a fome com lasanha e a sede com cerveja, isso não é prazer?
- Hum – Alberto ficou pensativo – você concorda que sexo é uma necessidade?
- Concordo.
- Então num caso de extrema necessidade você faria sexo com a mulher mais feia do mundo, estou comparando a mulher mais feia do mundo com pão com manteiga.
- Sacanagem com o pão com manteiga.
- Tá bom, com fome se come qualquer coisa, entendeu?
- Entendi, você quer saber se isso vale pra mulher também, entendi, sei lá, depende da fome, é vale, um moleque de 14 anos pega qualquer coisa.
- Continuando então, se esse moleque ou esse homem pegar um mulher muito bonita e gostosa – uma lasanha, digamos assim- ele estará amando ou continuará só comendo.
- Sei lá, Alberto, talvez o cara se apaixone.
- Então não se apaixonou ainda, já comeu e não se apaixonou, falta o quê?
- Convivência, a mulher pode ser um saco.
- Mas ele comeu com prazer.
- Deve ter comido.
- A mulher estava uma delícia, como a sua lasanha.
- Sei.
- Nem por isso é amor. Ele não satisfez sua necessidade com o básico, qualquer mulher, ele satisfez com um luxo, uma gatona, mesmo assim, continua sendo uma espécie de alívio. A diferença, caro amigo, é que você não precisa amar uma mulher. Sexo é essencial, amor é supérfluo. Amor é um luxo.
- Saquei. Então eu poderia amar essa lasanha se eu estivesse num restaurante bem caro?
- Não seja imbecil. Não é luxo no sentido financeiro, quero dizer que o amor é o que faz uma coisa de que você não precisa se transformar numa coisa de que você precisa.
- Explica melhor – a lasanha tinha acabado e ele já estava acendendo um cigarro.
- É como seu vício de fumar, ninguém nasce com necessidade de cigarro, mas todo mundo nasce com necessidade de comer, significa que a necessidade de cigarro é adquirida assim como a necessidade de uma determinada pessoa, muita gente sustenta que o amor é um vício, uma necessidade inventada na mente e que pode ser tão ou mais prejudicial que o álcool ou o fumo. E o pior. No amor ou no vício, não se tem fim. Por isso dizem que o amor é eterno. Você nunca tem o bastante de quem você ama. Jamais chega o alívio que as necessidades verdadeiras têm. É como se, mesmo sem fome, você continuasse comendo.
- Gula.
- Quê? Você deu essa volta toda pra dizer que sexo é fome e amor, gula.
Alberto ficou meio perdido, depois pegou seu choppe, deu um gole bem grande seguido de uma porrada na mesa e disse.
- É isso, porra, isso mesmo!
- Então vou pedir outra lasanha para você ver o quanto meu amor é sincero.

Gisela Cesario

domingo, agosto 29, 2010

Carolina

Desde que começou a acessar sites de relacionamento ou de encontros ou de namoro ou sei lá, Carolina estava mais estressada. Ela percebia que encontrar um cara de quem gostasse não era uma questão meramente geográfica.

Quer dizer, antes ela achava que só estava sozinha porque conhecia poucas pessoas, convivia com pouca gente, seu universo era limitado. Claro que deveriam existir homens maravilhosos, porém eles estavam simplesmente em outro lugar. Essa foi a idéia que levou Carolina a passar por toda aquela lenga lenga de cadastro, preencher os dados, upload a foto, essas chatices.

Valeria a pena se ela pudesse ter acesso a todos os homens da cidade, no mínimo. Porém, a vida é mais dura e sacana do que Carolina imagina.
Isso porque, agora mesmo, enquanto Carolina está lá fazendo sua busca, olhando novamente perfis que já viu mil vezes, tentando descobrir uma palavra inteligente ou interessante em montes de “adoro curtir o aki e agora” e “me add”, nesse momento que ela considera um hiato ridículo na sua vida interessante, nesse minuto seu ex-namorado está fazendo a mesma coisa.

E o que ele encontra? Claro, a foto dela. Ele não pensa duas vezes, aliás ele não pensa nem uma vez(faz isso com freqüência). Simplesmente, ele clica em chamar pra conversar e, imediatamente, um quadradinho fica piscando na tela de Carolina. Ela se prepara pra clicar em recusar quando acha o cabelo interessante, depois vê os olhos e lhe bate aquela sensação de terror, como se tivesse sido descoberta cometendo o pior dos pecados.

Calmamente, tenta respirar e lembrar que Gustavo não é nem jamais foi seu dono, eles não tem nada um com o outro e ele não tem o direito de lhe dizer o que ela deve fazer.

Ela clica em aceitar decidida a manda-lo para o inferno num vôo da Gol sem barra de cereal, mas percebe a idiotice que fez no momento em que ele digita mais rápido que ela. “Oi, gata, saudade.” Gata? Saudade? Filho de uma...Ela quer xingar, mas seus dedos têm vida própria. “O que vc está fazendo aki?” Ela se odeia, ela se odeia por ter feito essa pergunta idiota e ela se odeia por ter usado aki com k. “Procurando uma namorada.” Bem feito, ela mereceu essa resposta. Respira novamente, chega. “Bom te ver, boa sorte” Isso, agora sim, Carolina no controle, sai infeliz, me deixa em paz, tudo isso de uma maneira delicada. “Queria conversar mais.” Ele sabe ser irritante.

Automaticamente, como se estivesse falando com ele nos velhos tempos, ela responde sem vontade. “Sobre o quê?” Silêncio. Ela bota a mão no mouse pra fechar a josta do quadradinho. “Sobre por quê não deu certo.”
“Não deu certo o que?” Carolina não acreditava. “Nós dois. A gente se gostava. Eu, pelo menos.” “ É, eu também, mas....”

Mas o quê? Por que foi iniciar essa baboseira, como era azarada, encontrar seu ex num site e ainda ficar presa nesse quadrado idiota. “Mas o quê?” Ele perguntou. Já sei, pensou, vou fingir que caiu a conexão.
Num ato desesperado, puxou o computador da tomada. Queria simular uma pane com o maior realismo possível. O escuro tomou conta da tela. Sumiu tudo. Adeus, Gustavo, quadradinho, aki, me add.

Vou sair, pensou, ver gente de verdade, estava a ponto de enlouquecer com aquelas pessoas virtuais. Quando estava se levantando da cadeira, a campainha tocou. Seu coração deu um salto. Ela ia chamar a polícia, Gustavo tinha passado de todos os limites. Certamente, ele estava no cyber do outro lado da rua e resolveu ir até lá quando ela saiu do site. Isso era demais.

Andou decidida, mas com uma ponta de medo até a porta. Podia ser que ele tivesse ficado maluco, podia estar armado ou com uma faca, podia ser que tivesse uma notícia triste para dar a ela, câncer, aids...Gelou com essa possibilidade. Freou a raiva e decidiu abrir a porta polida e civilizadamente - Veja bem, Gustavo, iria dizer, não sou obrigada a ficar conectada com essa máquina assim como não sou obrigada a falar com você, entretanto se você estiver com aids...- Não, era melhor dizer outra coisa. Achou bom abrir de uma vez, ele já tocava a campainha de novo. “Veja bem, Gus..”
Não era o Gustavo! Caceta. Era um estranho, quer dizer, não totalmente estranho, ele tinha uma cara levemente conhecida. “Oi”, ele disse sem graça, “Meu nome é João. Trabalho no cyber aqui em frente”, apontou pra janela. “Sei e daí?”Falou sem pensar, já se arrependendo da grosseria, o coitado não tinha feito nada. “Não, nada não.” Coitado, Carolina pensou de novo.

“É que eu vi você puxando o computador da tomada e imaginei que tivesse com algum problema, eu lido com isso, posso consertar se você quiser.” AH? Era isso. Que legal. Ou melhor. Que abuso. Será? Ou será que seria gentil. Ele não era feio, queria consertar o computador dela, isso era bom, não era? Carolina passou tanto tempo apalermada sem reação olhando o rapaz que ele quase foi embora. De repente, como se tivesse recebido um beliscão, falou. “Desculpa, você foi super gentil, eu pensei que era outra pessoa, pode entrar, o computador ta ali,bom você sabe onde ele está.”

Ele andou calmamente até a máquina e ligou. Ela ficou ao seu lado rezando para que o computador apresentasse algum defeito, o que não seria exatamente incomum, mas, pela primeira vez em sua vida sem cérebro, aquela máquina voltou exatamente ao ponto em que tinha sido desligada.

O quadradinho do Gustavo, para sua infelicidade total, ainda estava lá, perguntando “Carol? Fala comigo”.

O rapaz do cyber baixou a cabeça, ela imaginou que ele sentia vergonha por ela, ótimo, agora a rua inteira ia saber que ela freqüentava aquele site. Ela agarrou o mouse e fechou o quadradinho de Gustavo, assim sem dizer nem tchau e virou pro rapaz do cyber como se o que estivesse na tela fosse a coisa mais corriqueira do mundo. “Acho que tá funcionando, mas obrigada de qualquer forma.” Ele continuou sorrindo. Era bonito mesmo, mas aquele sorriso, ela achava que..., ela olhou pra tela novamente e lá estava a resposta, agora sem quadradinho algum na frente- cyberboy28- clica aki e me add.

Gisela Cesario

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Brigue

Acabei de desligar o telefone. Ela não quis falar comigo. Estava irritada, obviamente. Isso é um ótimo sinal. Mulheres irritadas fazem sexo três vezes melhor que mulheres felizes, elas têm mais garra, mais sede de vingança, tudo isso acaba se confundindo com tesão. Nada como uma boa briga. Principalmente quando sei que vou ganhar, só não sei quando vou ganhar.

Lia é minha namorada há 6 meses. Nosso relacionamento vai de mal a pior,mas ela não percebe porque eu não deixo, não permito que ela veja as pequenas ondulações no mar porque vivo provocando maremotos que exigem sua atenção inteira e imediata. Deu pra entender? Funciona assim: vocês estão passando um final de semana péssimo, tudo vai dando calmamente errado, engarrafamentos, filas nos bares, comidas sem gosto (em todos os sentidos), uma hora qualquer ela vai perceber que esse relacionamento não tem futuro, o que é igual a dizer que tem um futuro horrível, então o que fazer? Arrume uma briga, ou melhor, faça com que ela brigue com você, aí sim, seu cérebro (o dela) estará realmente ocupado. Como? É fácil.
Finja que seu celular tocou (ele deve estar dentro do bolso para parecer que estava vibrando), aí atenda com uma cara de agente da CIA no meio da guerra do Iraque, tape o bocal para ela não ouvir a voz que não existe do outro lado da linha e simule uma conversa absurda construída somente de monossílabos:
- Oi.
- Não.
- É.
- Tá.
- Só.
- Hein?
- Ah..
- Tá
Se for necessário, acrescente somente uma sílaba, pra irritar:

- Quando?
- Então.
- Posso.
- Outro.

Desligue. Olho pro rosto desconfiado dela e diga:

- Era o Luiz.

Isso será ótimo se o Luiz for uma pessoa que não telefona nunca pra você e com quem você jamais teve uma conversa tão integrada. Se ela não ficar desconfiada o suficiente, acrescente:

- Ele está com medo de ser demitido.

Agora só se ela realmente não estiver nem aí pra você, será possível que ela não ache nada estranho. Por que alguém com medo de ser demitido telefonaria para outro com quem mal fala e teria uma conversa feita de tás e oks? Nem a namorada mais burra do mundo cairia nessa. Ela pode usar a técnica de fingir que acredita só pra provocar o seu ódio, mas você poderá perceber pequenos sinais nos momentos seguintes. Tente, por exemplo, pegar a mão dela, que ficará rígida antes de largar a sua ou então ficará mole, gelada até invariavelmente largar a sua. Ela também pode colocar um sorriso congelado na cara, daqueles que transmitem muito mais ódio que alegria. Mas o melhor mesmo é se ela armar o barraco, aí você deve ser o mais incoerente possível. Tipo:

- Por que o Luiz ta te ligando?
- Já, te falei, ele ta com medo de ser demitido.
- E daí? Você não trabalha com ele.
- Ele queria conversar com alguém.
- Mas vocês não conversaram, foi só meia dúzia de palavras.
- Ah, as mulheres não entendem, homem fala pouco.
- Não seja ridículo, não era o Luiz, o cara nem é seu amigo.
- Ora, a gente se conhece a mais de dez anos.
- E nunca se falam, a não ser na praia.
- Acabamos de nos falar.
- Deixa eu ver.
- O quê?
- O celular, deixa eu ver seu celular.
- Ficou maluca? Está desconfiada de mim?
- Passa pra cá essa droga de telefone.

Agora é sua vez. O descontrole dela chegou ao limite. Pegue o celular, faça algumas manobras e declare:

- Pronto, apaguei todas as ligações. Ou você acredita em mim ou acabou.

Daí pra frente é com você, ela vai chorar ou gritar ou te bater ou todas as coisas juntamente. Você vai pra sua casa e ela pra dela ( atenção, não use essa técnica se vocês morarem juntos). Deixe passar 2 dias inteiros. Beba, saia com seus amigos mais mulherengos, pegue as mulheres menos indicadas, sinta-se livre ou simplesmente não faça nada, fique vendo dvds, organizando os livros em ordem alfabética, arrumando as meias por cor e aí, no terceiro dia, telefone. Como se nada tivesse acontecido. Não volte ao assunto, não peça desculpas. Só pergunte se ela quer jantar.Foi o que eu fiz. Sabe o que ela disse:

- Não posso falar agora. Ligo mais tarde.

Nada de desculpas, coisa mais normal do mundo. Respondi tudo bem e agora estou aqui, glorioso, esperando o que vai acontecer, o telefone tocar, ela dizer que hoje não pode jantar e mandando que eu ligue amanhã. Será sua pequena vingança. Eu fingirei que aceito a punição e talvez amanhã a gente consiga ter uma noite de sexo que preste. As mulheres não conseguem imaginar o sacrifício que a gente...peraí. O telefone. É ela.

- Oi amor.
- Preciso conversar com você.
- Fale.
- Liguei pro Luiz.
- Quê?
- Ele disse que não fala com você há um mês.
- Mentira – pense em alguma coisa, rápido.
- Ele está aqui do meu lado.
- Mentira.
- Alô. – voz de homem – caralho, é o Luiz, não acredito.
- Luiz, cara, o que você ta fazendo aí?
- A Lia fez questão que eu viesse, queria conversar pessoalmente.
- Saia daí agora.
- Não posso. Ela está chorando.
- Se você ficar, quem vai chorar é você, seu dedo-duro.
- Você não avisou que era pra mentir, eu falei a verdade.
- Passa pra Lia, seu desgraçado, passa agora.
- Alô – ela está fria, dona da situação.
- Eu sempre soube.
- Do que você está falando.
- Você e o Luiz, eu armei isso tudo só pra ver se ia acontecer o que está acontecendo. Eu sempre soube. Você e meu melhor amigo têm um caso.
- O Luiz não é seu melhor amigo.
- E o resto? Vocês estão tendo um caso? Acertei, não foi? Eu desconfiava, mas não tinha certeza, agora..
- Cale a boca, não tem nada disso, o Luiz só..
- Estou indo pra aí agora quebrar a cara desse desgraçado, você vai ver.
- Pe..

Desligo. Meu coração está acelerado. Passei dos limites. Me fudi. Nunca envolva uma pessoa que existe numa briga que não existe. Agora vou ter que espancar um amigo por causa de uma mulher de quem nem gosto. Odeio bater em pessoas que conheço. Espero que o desempenho dela depois dessa briga compense. O risco é grande, mas assim fica mais empolgante. Coitado do Luiz.

domingo, novembro 29, 2009

Respostas

Domingo em São Paulo. Poucas opções além da mega livraria. Entram sem pensar se realmente estão a fim de ler alguma coisa. Não tem mais o que falar. Já almoçaram juntas, já contaram casos dos casos, já estão até com vontade de ir pra casa, talvez ver Silvio santos, rolentrando....mas o programa não pode acabar tão cedo, fica chato, na rua faz um calor insano. Entrar na livraria é uma questão de sobrevivência, o ar condicionado se torna uma necessidade, quem disse o Brasil não tem leitores?
- Você acha que ele me acha velha pra ele? – pergunta Daniela, pouco se importando com a resposta.

- Cara, muito velha – diz o homem olhando a cara de uma autora na capa de um livro famoso.

Daniela se vira. O homem continua, o papo é com o amigo ao lado.
- Porra, será que a gente tá velho assim?

- Mas é óbvio, isso é tão obvio – quem responde são dois gordos um pouco mais ao longe, ou melhor, ao perto, examinado um livro de culinária.
- Imagine, ensinar um refogado, esse livro é ridículo ou ridículo sou eu?

- Você, sempre você – se volta a menina pro namorado – será que é só em você que você consegue pensar? Eu não existo. Eu não sou porra nenhuma, alguma outra coisa além de você é importante?

- Por favor, é muito importante pra mim, mãe, compra – pedia uma adolescente.
- Por quê, é sobre o quê ?– responde a mãe.

- Putaria, né? - Diz uma branquela com cara de que não dormiu bem ou não dormiu mesmo ontem. - Tem outro assunto sobre que esse cara fale?
- Mas putaria em que sentido? – pergunta a companheira meio alienada.

- Não faz sentido, entende – explica o vendedor a um vestibulando- o melhor é isso, num livro de poesias o sentido não importa. Você não tem de sentir, entender é parede, você tem de ser uma árvore
- Ah – diz o jovem que vai fazer vestibular- ele não fala, mas pensa – viado, com certeza, pra que fui perguntar isso prum viado?

- Olha, todos os homens são viados, - comentam as duas amigas do início- só que uns mais e outros menos.

O moleque se vira, mas pensa que elas são velhas demais pra ele. Elas continuam.
- Ele deve ser homofóbico.

- Que signfica homofóbico? – pergunta o adolescente ao vendedor que revira os olhos

- Sabe quando o cara é um babaca? - Um casal ao lado comenta. - Mas um babaca mesmo, do tipo que tem cara de babaca, jeito de babaca, o cara é um otário.
- Calma, responde a mulher, ter raiva do seu chefe não adianta nada, a raiva faz mal pra quem tem, eu, por exemplo, tenho raiva de que?

- De cabelo liso - fala uma menina olhando as revistas. - Como eu odeio quem tem cabelo liso assim, com essa cara de japonesa.
- Puta, nem fala, e essas magrelas então, nem fala, será que elas não comem, não têm fome?

- Só sinto vontade de beber - diz um cara magrelo no canto dos cds pra uma amiga magrela também.
- Eu queria era fumar um cigarro, responde ela.
- Vamos sair daqui.

- Você não vê que não tem saída – fala um coroa pro outro – Tenho que terminar esse casamento.

- Isso não tem fim – fala a mãe – Esse harry potter lança um livro atrás do outro, eu não vou parar de gastar dinheiro nunca.

Do lado de fora, um camelô comenta com o outro.
- O que tanta gente faz aí dentro? Só pode ser o calor.
- Você é um cara burro, né, sabe ler? Eles entram aí pra comprá livro.

-Pois pra mim, eles não querem nada com nada – Mas quem disse isso não foi o camelô, foi a mulher do início, já indo embora. - Os homens não querem nada com nada, melhor sair dessa livraria e ir pra casa.

Ao entrarem no táxi, ainda viram a propaganda de uma revista de decoração. “Quem casa quer casa?”
Gisela Cesario

sexta-feira, novembro 20, 2009

Leis Secas

Você sabia que beber já foi permitido? Não sacaneia. Estamos em 2022, o ano do fim do mundo, e dois meio bêbados, num beco sujo de um subúrbio da cidade, tomam uma cerveja e conversam. Nisso, um terceiro intervém. Isso faz tanto tempo, o cara vai achar que você tá mentindo. O jovem mais ou menos bêbado olhou para o velho mais pra menos bêbado. Juro, garantiu o velho, a gente sentava numa cadeira de um bar, bebia, fumava e ainda sai dirigindo.E como sobreviviam? Perguntou o jovem. Quer dizer, é impossível, não é? Pois se você fuma, você morre e se você dirige depois de beber é óbvio que vai matar alguém.O velho deu um sorriso meio dolorido antes de continuar. Meu filho, você já parou para pensar? Como assim? Parar para pensar, quer dizer, você pode pensar andando, fazendo mil coisas, mas, teoricamente, parado você se concentra melhor, você, meu filho, já parou pra pensar como esse mundo cheio de proibições em que a gente vive faz pouco sentido. Não estou entendendo, o jovem até tinha ficado careta, pra usar um termo de velho. O velho respirou fundo e foi em frente. Olha, o fumo faz mal à saúde, também cresci lendo isso nos cartazes, bebida e direção não combinam, mas pra que fizeram o ser humano com um cérebro, pra que nos deram o poder de discernimento, a responsabilidade, o auto-controle, essas coisas todas? Auto-controle? Meu carro não tem isso. Não, moleque, não tô falando de auto no sentido de automóvel, tô falando de auto no sentido de você mesmo, de você ser responsável pelo que faz, pelos seus atos, ser capaz de se controlar. Já vivi numa época em que não era proibido poder fazer algo errado, era preciso realmente fazer ou pelo menos, ter quase certeza que se ia fazer. A gente devia ter sido punido, quando erramos, devia ter alguém pra nos punir, mas nunca houve. E de repente, quando menos esperávamos, chegou alguém pra nos punir antes de errarmos. Não estou entendendo nada, só acho certo ser proibido beber, o cara fica meio maluco, olha você, por exemplo. Escuta - o velho puxou fundo o ar novamente – vou explicar melhor. Cabe a você, ou melhor, devia caber a você, saber se devia beber ou fumar ou não. Você é adulto, pode ler, entrar em milhares de sites, se informar, você devia ser responsável pela sua vida e, caso você ameace outras vidas, você devia ser responsável por elas. Sacanagem é termos de estar aqui nesse beco sujo e nojento, só pra beber duas cervejas e fumar um cigarro. O jovem coçou a cabeça. Depois desatou a rir. Cara, cara, cara, tu tá muito doido..... Sabe o que isso parece, parece o big brother..aí,se tiver uma câmera me filmando eu quero que a Ivana saiba que eu não comi ninguém depois dela, mas antes hahahhhaha. ....Cala a boca, otário – acabava de chegar um amigo, alguém que estava sempre no beco, ele trazia um saco meio molhado. Olha só o que tenho, é da boa, alguém vai? Todos olharam com cara pensativa, menos o velho, que saiu pegando, afinal, que porra, eram só batatas fritas. Caralho, meu irmão, onde tu conseguiu isso? Perguntou o jovem, olhando de forma invejosa pro velho que mastigava alegremente. Ah, mano, eu tenho minhas fontes, vai ou não, cinco na minha mão. Vou não, disse o jovem, gordura trans é droga muito pesada, dá onda ruim, tenho amigos que já foram e cara, teve um brother meu que, cara, o cara ficou tipo gordo, entendeu? Nojento. Você sabe que a coisa mais importante que temos é nosso corpo, né? Pois, é, o cara, pô, desculpa as mina que tiverem ouvindo, mas o cara criou barriga. Isso mesmo. Barriga. Irmão, só pode ter sido essa parada de gordura trans, mas beleza, pode consumir, sei que aqui no beco rola de tudo, eu tô ligado pra não ter preconceito com nada. Quer fazer, faz. Nisso, o velho se intrometeu. Você sabia que eu já dirigi depois de beber, comer batata frita e ainda fumando um cigarro? Risada geral. Ih, olha o coroa, tá viajando nas trevas....O velho ficou puto, ou melhor, com raiva, deu uma porrada na parede suja do beco. Calma, mano, faz barulho não. Vocês são uns idiotas, de quê adianta esse corpo, essa saúde, se o cérebro de vocês não funciona? Mens sana in corpore sano. É o quê, coroa? Fala brasileiro. Disse que o corpo em forma funciona se for pra servir a uma mente que funcione, fora isso, é um animal. Porra, aí, agora o coroa falou, disse o trafica de batata, a batata aqui tá animal!!!Não, imbecil, disse o velho, mastigando a batata e tomando mais um gole. Vocês não são animais porque bebem ou porque fumam ou porque comem batata frita, vocês são animais simplesmente porque não pensam, porque se acham incapazes de decidir por vocês mesmos se o lugar é adequado, se já beberam o suficiente ou se devem ou não comer mais uma batata, sacaram? O que é sacar? Perguntou o trafica. Sacar é entender, respondeu, com pena, o velho. É o que tô tentando dizer desde o início, deviam deixar a gente decidir o que faz mal, o que é errado e o que não é , punir quem faz o mal, não quem simplesmente pode um dia, talvez, por alguma circunstância, quem sabe, fazer o mal... Tô entendendo cada vez menos, disse o jovem, larga essa gordura trans, coroa. Aí, vou ser o mais claro possível – disse o velho: eu sei o que faço, não sou moleque – disse isso olhando pra cara alienada do jovem – sei beber, sei fumar, sei comer batata frita, sei dirigir. E se um dia errar nesse julgamento, sei que mereço ser punido. Nisso todos começaram a rir, ninguém podia saber tanto...estava na lei, a lei que dizia que ninguém sabia de coisa alguma até que fosse oficialmente comprovado, porra, o coroa não tinha visto na TV? Essa lei não diz isso, falou o coroa, eu li essa porra. Você o quê? Fazia séculos, ou seriam só anos, que ninguém lia, só via a TV, imagina então ler uma lei...Peraí, vai aonde assim, doidão de batata frita? O coroa saiu do beco, apenas andando, sem batata, sem cerveja, sem carro, sem bicicleta, mas com a certeza que já estava velho,velho demais pra aquele mundo.
Gisela Cesario

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Mais um dia

A poucos dias do final do ano, os dois conversavam na praia, falando do que fazer no reveillon.

-Não acredito que você não vai fazer nada de diferente.- Disse Sérgio, ainda não totalmente curado da ressaca de natal.

Embora o estômago e a cabeça lhe implorassem por um minuto de sossego, Sérgio mantinha sua agenda de comemorações de fim de ano que todos sabem culmina no grande porre ( com o sentido que for) que é o reveillon.

- Não vou sair do lugar – respondeu o amigo.

- Estou a fim de passar na praia, mas se não tiver uma festa, é fogo, maior muvuca, aperto...

- Pois é, mas você insiste, né?

- Tenho que insistir, não entendo como você pode ficar nessa calma, repetindo sua rotina, como dia 31 fosse um dia normal.

- É exatamente isso que vou fazer, vou acordar à mesma hora e dormir também, e entre uma coisa e outra vou executar minhas tarefas normalmente, não dou a mínima.

- Acho espantoso, todo mundo correndo de um lado pro outro e você nessa calma.

- Por que você não aprende comigo? A ficar calmo ?

- Não dá, estou eletrizado desde primeiro de dezembro, compras, choppes, festas, noitadas.

- Aposto que não está trabalhando direito.

- Claro que não estou, ninguém está, todo mundo está que nem louco, comprando de dia e enchendo a cara de noite e se arrastando por aí em engarrafamentos. Ah, desculpa, todo mundo menos você.

- Mas eu preciso trabalhar, não sei fazer outra coisa e gosto que seja assim, você me acha insensível?

- Não, não é isso, mas você podia pelo menos dizer se vai aparecer dia 31.

- De novo essa pergunta, foi pra isso que você veio conversar comigo?

- Não, somos amigos desde pequeno, fui criado nessa praia, só acho que, já que temos tanta intimidade, não custava contar pra mim se você aparece dia 31 e dia primeiro. Juro que faço segredo.

- Ah, Sérgio, pelo amor de Deus. Não sou igual a você, não planejo as coisas, faço o que me der vontade na hora, se resolver aparecer, apareço, senão pode ser que passe uma semana sem ninguém me ver.

- Bom, agora você está sendo insensível.

- Só porque não me esforço pra agradar que nem todo mundo? Pois saiba que tenho muito mais amigos que você e não faço nadica de nada para isso, sou eu mesmo, pronto. Você devia experimentar.

- Ah, claro, se eu fosse enorme e poderoso e também...Não pode ser, volta aqui, não me deixa falando sozinho, você é muito preso a esse lance de horário, fica mais um pouco, porra, são só 7 horas da noite, a gente está no horário de verão....

Mas não adiantava implorar, Sérgio sabia. Aquele cara era o astro, o rei, e não estava nem aí. Surgia na mesma hora quase todo dia e ia embora também, seguindo sua rotina quase implacável, pois às vezes nem aparecia.
Talvez ele também devesse ser assim, mais espontâneo, menos condicionado a alegrias programadas, com hora marcada, fazer tudo naturalmente. Vai ver era por isso que o cara não tinha ressaca e vivia feliz. Vai ver era por isso o pessoal ainda batia palmas pra ele. Pensando nisso, andou lentamente e se juntou à multidão que aplaudia mais um pôr do sol.

Gisela Cesario

sábado, abril 14, 2007

Eulália e o paraíso

A primeira visão que teve foi de São Pedro, o conhecido guardião do céu. Santo que, quando não estava intercendo por seus fiéis assumia suas funções burocráticas de fiscalizar os portões do paraíso.
Prancheta na mão, olhou não sem bondade a moça que vinha aguarrada à sua bolsa, como se no céu, os bens mateiriais pudessem ter alguma importância.
O santo pigarreou:
- Nome?
- Ah?
- Nome?
- Eulália
- Eulália do quê?
- Eulália Garcia Alves, disse, sem disfarçar um certo orgulho.
- Família Rica?

Percebendo o furo, mudou de estratégia.

- Sim, mas sempre fomos muito preocupados com o bem estar social, sou, quer dizer, era, até voluntária, uma vez por ano comprava uma boneca para uma criança necessitada.
- Ah...Deve ter feito uma diferença...
- Olha,se todo mundo fizesse a mesma coisa.
- Tá bom, sou o porteiro do céu, isso aqui ainda não é o juízo final. Seu nome está na lista, pode entrar.
- Jura?
- Claro, olha aqui, Eulália Garcia Alvez.

Eulália viu o erro de ortografia e titubeou ante a verdade e o que poderia ser a passagem para o inferno. Mas não era hora de ter medo. Já tinha morrido mesmo.


- Não sou eu.
- Quê? – São Pedro balançava suas chaves aturdido.
- Está errado, meu sobrenome se escreve com s e não Z.

São Pedro deu uma gargalhada sonora, daquelas que só um santo dá, e até as nuvens balançam e disse.

- Que bobagem, claro que é você, o anjo deve ter escrito errado, esse menino passa o dia interio na internet, esqueceu como se escreve.
- Mas e se não for eu? E se a Eulália Garcia Alvez estiver no inferno agora por culpa minha ou do anjo ou sei lá.
- Impossível minha filha – respondeu o santo já sem muita paciência – a probabibilidade de ter morrido outra Eulália Garcia no mesmo dia que você é quase nula.
- Quase...

São Pedro guardou as chaves no bolso e olhou com espanto.

- Não quer entrar?
- Será que eu não podia ir até o portão do inferno ver se meu nome não está lá?
- Veja bem, minha filha, isso aqui não é uma lista de boate. Depois de entrar, a senhora vai passar aqui toda a eternidade. Vai por mim, a eternidade é um tempão.
- Quer dizer que se eu for pro inferno...
- Eu agradeço se a senhora não pronunciar mais esse nome aqui.
- Diabos!
- Esse também não.
- Mas o senhor precisa entender, eu não sei se mereço ir pro céu.

O santo suspirou e puxou uma nuvem macia pra se sentar.A conversa ia ser longa.

- Vamos lá. A senhora se considera uma boa pessoa?
- Não sei, eu ajudo quando posso, mas me sinto culpada a maioria das vezes, não posso dar esmola todo dia pra todo mundo.
- Se isso acontecesse...
- Se isso acontecesse eu ia, ia..
- Ficar pobre?
- Não.
- Passar fome?
- Ser pendurada na cruz que nem Jesus?
- Claro que não! Mas é que às vezes eu tenho só uma nota de 50 reais e não posso dar uma nota de 50 reais.
- Motivo?
- É muito!
- Pra quem? Pra o mendigo ou pra senhora que saca 50 reais no caixa eletrônico toda hora?
- O senhor acha que isso é motivo pra eu ir pro inferno?
- Sei lá, avareza...
- Pensei que o senhor quisesse ajudar.
- Pois é, falando em ajudar, a senhora ajudou alguém em vida?
- Claro!

Agora Eulália estava radiante, havia participado de milhares de bingos, bazares beneficente, comido toneladas de mac lanches felizes.

- Isso não vale – advinhou São Pedro.
- Como o senhor sabe o que eu ia dizer?
- Vamos dizer que eu tenho intuição de santo.
- Mas eu tentei ajudar, todas as vezes, eu tentei, só não sabia o que fazer, a gente na terra só se preocupa em ganhar a vida, passar férias viajando, esmola, ajuda, é o de menos, me desculpa dizer isso, mas muitas vezes desejei que os mendigos não existissem, não foi por maldade, mas eu não sabia o que fazer com eles. O governo é que devia ajudar.
- E a senhora?
- Eu?
- É, a senhora, que está aqui, na porta do céu, não devia tentar ajudar?
- Mas o governo...
- Quem manda na sua vida? Deus ou o Governador?

Eulália baixou a cabeça.

- Deus.
- Deus ou o presidente?
- Deus.
- Deus ou o seu patrão?

Eulália pareceu pensar um pouco, mas respondeu.

- É Deus.

São Pedro levantou da nuvem, girou as chaves, olhou pra Eulália e finalmente disparou.

- Vá até ali, é a porta do inferno, veja se seu nome está lá. Depois a gente conversa, ou, como diria Caetano Veloso. Ou não. Há, há...

Balançando a barriga de tanto rir da prória piada, São Pedro observou o caminhar lento e resignado de Eulália, enquanto isso assobiava “e que tudo mais vá pro inferno..”’

Eulália chegou temerosa, passos curtos e vacialntes, ouviam-se gritos e a temperatura fazia a rio branco no verão parecer uma estação de esqui.

- Eulália, gritou para o jovem diabinho porteiro.
- O quê? – ele estava com o walk man ou walk devil no ouvido e não tinha entendio.
- Falar com quem?
- Ah, diabo...
- Lamento, mas ele está em reunião. Posso ajudar?
- Queria ver se meu nome está aí?
- A senhor não acabou de vir do céu?
- Vim.
- Então já pode ir entrando, se seu nome não está lá, está aqui, o purgatório já era, acabou a verba pra manter aquele lugar cheio de almas penadas.
- Meu nome está lá, mas é que...
- É que a senhora é doida né? Tá com nome no céu, veio fazer o quê no inferno?
- Meu nome não está escrito certo, tenho medo de estar cometendo uma injustiça.
- Xispa!
- Quê?
- Uma pessoa como a senhora que se arrisca a passar a vida inteira, ou melhor, a eternidade toda no inferno, só porque quer ser justa, não pode entrar aqui.
- Mas...
- Nem mas, nem meio mas,pode voltar lá pro céu que é seu lugar.
- Mas as esmolas, a ajuda que eu não dei, São Pedro falou...
- Concordo com ele. A senhora é pão-dura, mas de lá até o inferno é uma grande distância.

Dito isso, o diabinho começou a gargalhar, uma gargalhada que, de alguma forma, nos ouvidos de Eulália,se assemelhava a de São Pedro.
Voltou decidida.

- Vou pro paraíso!
- Parabéns- São Pedro ria um riso maroto enquanto lhe abria as portas do lugar onde a paz reinava e a maldade não exisita.
-
Eulália já ia entrar mas se deteve e sorriu, virando-se para o santo.

- o Senhor fez de próposito.
- EUUUU???
- Tá pensando que não vi? As asas dele escondidas atrás daquela fantasia de diabo? Aquele não é diabo nem aqui nem no inferno
- A senhora está muito agressiva pra quem quer entrar no céu.

São Pedro poderia ter ficado possesso com a ousadia de Eulália, poderia tê-la realmente mandando ao inferno. Ao invés disso, abriu as portas do paraíso e , com a calma com que só um Santo sabe falar, disse:

- Eulália, minha filha. Aquele diabinho que você acabou de ver, aquele com asas de anjo, mesmo que estivessem escondidas...Ele não é o único. Você sabe disso? Não é?

Eulália sabia. Ela não precisou responder, ela já tinha entrado no paraíso e já sabia a resposta para todas as perguntas.

Gisela Cesario

Eulália e o paraíso

A primeira visão que teve foi de São Pedro, o conhecido guardião do céu. Santo que, quando não estava intercendo por seus fiéis assumia suas funções burocráticas de fiscalizar os portões do paraíso.
Prancheta na mão, olhou não sem bondade a moça que vinha aguarrada à sua bolsa, como se no céu, os bens mateiriais pudessem ter alguma importância.
O santo pigarreou:
- Nome?
- Ah?
- Nome?
- Eulália
- Eulália do quê?
- Eulália Garcia Alves, disse, sem disfarçar um certo orgulho.
- Família Rica?

Percebendo o furo, mudou de estratégia.

- Sim, mas sempre fomos muito preocupados com o bem estar social, sou, quer dizer, era, até voluntária, uma vez por ano comprava uma boneca para uma criança necessitada.
- Ah...Deve ter feito uma diferença...
- Olha,se todo mundo fizesse a mesma coisa.
- Tá bom, sou o porteiro do céu, isso aqui ainda não é o juízo final. Seu nome está na lista, pode entrar.
- Jura?
- Claro, olha aqui, Eulália Garcia Alvez.

Eulália viu o erro de ortografia e titubeou ante a verdade e o que poderia ser a passagem para o inferno. Mas não era hora de ter medo. Já tinha morrido mesmo.


- Não sou eu.
- Quê? – São Pedro balançava suas chaves aturdido.
- Está errado, meu sobrenome se escreve com s e não Z.

São Pedro deu uma gargalhada sonora, daquelas que só um santo dá, e até as nuvens balançam e disse.

- Que bobagem, claro que é você, o anjo deve ter escrito errado, esse menino passa o dia interio na internet, esqueceu como se escreve.
- Mas e se não for eu? E se a Eulália Garcia Alvez estiver no inferno agora por culpa minha ou do anjo ou sei lá.
- Impossível minha filha – respondeu o santo já sem muita paciência – a probabibilidade de ter morrido outra Eulália Garcia no mesmo dia que você é quase nula.
- Quase...

São Pedro guardou as chaves no bolso e olhou com espanto.

- Não quer entrar?
- Será que eu não podia ir até o portão do inferno ver se meu nome não está lá?
- Veja bem, minha filha, isso aqui não é uma lista de boate. Depois de entrar, a senhora vai passar aqui toda a eternidade. Vai por mim, a eternidade é um tempão.
- Quer dizer que se eu for pro inferno...
- Eu agradeço se a senhora não pronunciar mais esse nome aqui.
- Diabos!
- Esse também não.
- Mas o senhor precisa entender, eu não sei se mereço ir pro céu.

O santo suspirou e puxou uma nuvem macia pra se sentar.A conversa ia ser longa.

- Vamos lá. A senhora se considera uma boa pessoa?
- Não sei, eu ajudo quando posso, mas me sinto culpada a maioria das vezes, não posso dar esmola todo dia pra todo mundo.
- Se isso acontecesse...
- Se isso acontecesse eu ia, ia..
- Ficar pobre?
- Não.
- Passar fome?
- Ser pendurada na cruz que nem Jesus?
- Claro que não! Mas é que às vezes eu tenho só uma nota de 50 reais e não posso dar uma nota de 50 reais.
- Motivo?
- É muito!
- Pra quem? Pra o mendigo ou pra senhora que saca 50 reais no caixa eletrônico toda hora?
- O senhor acha que isso é motivo pra eu ir pro inferno?
- Sei lá, avareza...
- Pensei que o senhor quisesse ajudar.
- Pois é, falando em ajudar, a senhora ajudou alguém em vida?
- Claro!

Agora Eulália estava radiante, havia participado de milhares de bingos, bazares beneficente, comido toneladas de mac lanches felizes.

- Isso não vale – advinhou São Pedro.
- Como o senhor sabe o que eu ia dizer?
- Vamos dizer que eu tenho intuição de santo.
- Mas eu tentei ajudar, todas as vezes, eu tentei, só não sabia o que fazer, a gente na terra só se preocupa em ganhar a vida, passar férias viajando, esmola, ajuda, é o de menos, me desculpa dizer isso, mas muitas vezes desejei que os mendigos não existissem, não foi por maldade, mas eu não sabia o que fazer com eles. O governo é que devia ajudar.
- E a senhora?
- Eu?
- É, a senhora, que está aqui, na porta do céu, não devia tentar ajudar?
- Mas o governo...
- Quem manda na sua vida? Deus ou o Governador?

Eulália baixou a cabeça.

- Deus.
- Deus ou o presidente?
- Deus.
- Deus ou o seu patrão?

Eulália pareceu pensar um pouco, mas respondeu.

- É Deus.

São Pedro levantou da nuvem, girou as chaves, olhou pra Eulália e finalmente disparou.

- Vá até ali, é a porta do inferno, veja se seu nome está lá. Depois a gente conversa, ou, como diria Caetano Veloso. Ou não. Há, há...

Balançando a barriga de tanto rir da prória piada, São Pedro observou o caminhar lento e resignado de Eulália, enquanto isso assobiava “e que tudo mais vá pro inferno..”’

Eulália chegou temerosa, passos curtos e vacialntes, ouviam-se gritos e a temperatura fazia a rio branco no verão parecer uma estação de esqui.

- Eulália, gritou para o jovem diabinho porteiro.
- O quê? – ele estava com o walk man ou walk devil no ouvido e não tinha entendio.
- Falar com quem?
- Ah, diabo...
- Lamento, mas ele está em reunião. Posso ajudar?
- Queria ver se meu nome está aí?
- A senhor não acabou de vir do céu?
- Vim.
- Então já pode ir entrando, se seu nome não está lá, está aqui, o purgatório já era, acabou a verba pra manter aquele lugar cheio de almas penadas.
- Meu nome está lá, mas é que...
- É que a senhora é doida né? Tá com nome no céu, veio fazer o quê no inferno?
- Meu nome não está escrito certo, tenho medo de estar cometendo uma injustiça.
- Xispa!
- Quê?
- Uma pessoa como a senhora que se arrisca a passar a vida inteira, ou melhor, a eternidade toda no inferno, só porque quer ser justa, não pode entrar aqui.
- Mas...
- Nem mas, nem meio mas,pode voltar lá pro céu que é seu lugar.
- Mas as esmolas, a ajuda que eu não dei, São Pedro falou...
- Concordo com ele. A senhora é pão-dura, mas de lá até o inferno é uma grande distância.

Dito isso, o diabinho começou a gargalhar, uma gargalhada que, de alguma forma, nos ouvidos de Eulália,se assemelhava a de São Pedro.
Voltou decidida.

- Vou pro paraíso!
- Parabéns- São Pedro ria um riso maroto enquanto lhe abria as portas do lugar onde a paz reinava e a maldade não exisita.
-
Eulália já ia entrar mas se deteve e sorriu, virando-se para o santo.

- o Senhor fez de próposito.
- EUUUU???
- Tá pensando que não vi? As asas dele escondidas atrás daquela fantasia de diabo? Aquele não é diabo nem aqui nem no inferno
- A senhora está muito agressiva pra quem quer entrar no céu.

São Pedro poderia ter ficado possesso com a ousadia de Eulália, poderia tê-la realmente mandando ao inferno. Ao invés disso, abriu as portas do paraíso e , com a calma com que só um Santo sabe falar, disse:

- Eulália, minha filha. Aquele diabinho que você acabou de ver, aquele com asas de anjo, mesmo que estivessem escondidas...Ele não é o único. Você sabe disso? Não é?

Eulália sabia. Ela não precisou responder, ela já tinha entrado no paraíso e já sabia a resposta para todas as perguntas.

Gisela Cesario