Rivalidade
Acordei com um gosto estranho na boca, uma secura...Procurei a água que costumo deixar ao lado da cama, mas ela não estava lá. Ao levantar notei que a cama não havia sido desfeita. Pensei que tivesse dormido bêbado. Tentei lembrar o que tinha feito na noite passada, mas nada de específico me vinha à mente. Só conseguia me recordar de passagens inteiras da minha vida: meu casamento, o enterro de minha mãe, minha formatura. Coisas corriqueiras também me passavam pela cabeça: meu tratamento de canal, a briga com o cara do recursos humanos, o metrô lotado. Não me lembrava de ter bebido tanto assim pra ter uma amnésia tão grande.
Quando olhei no espelho tomei um susto: estava nu! Dormi pelado, sem desfazer a cama e não me lembrava de coisa alguma. Que diabos eu tinha bebido? Andei cambaleando até meu armário mas depois percebi que meu cambalear era psicológico. Eu não estava tonto. Não sentia dor de cabeça. Nada. Era a ressaca mais forte e ao mesmo tempo a mais gentil do mundo.
De repente meu irmão entrou no quarto. Nem bateu na porta. Foi entrando. Quando deu de cara comigo pelado levou o maior susto.
- AHHHHH
- Calma, Léo, já vou me vestir, você podia ter batido antes, né?
- O que você está fazendo? – perguntou meu irmão com cara de espanto.
- Estou indo me vestir. Cara, você acredita que eu não lembro de nada que aconteceu ontem. Será que eu fiz alguma besteira?
- Você não lembra?
Ia responder a essa pergunta quando abri a minha gaveta e senti um horrível cheiro de mofo.
- Meu Deus! Minhas roupas estão com um cheiro esquisítissimo!
- É porque elas estão guardadas há muito tempo. Ninguém quis mexer.
- Ninguém quem? Essas roupas são minhas, só quem mexe sou eu.
- Você não pode.
- Não posso por quê?
- Você morreu.
- O quê?
- Você morreu, já faz seis meses. Você não lembra?
- Léo, pára de palhaçada. O que você me fez beber ontem?
- Parei de beber depois que você morreu.
- Eu não morri e você bebe que nem um peixe!
- Parei. Foi remorso.
- Você foi culpado pela minha morte?
- Mais ou menos.
- Mais para mais?
- Pode ser. Eu deixei você beber comigo na festa do Antônio, só tinha maluco.
- Ah, o Antônio...
- Lembra dele, coitado? Morreu também.
- De quê?
- Da mesma coisa que você. Ele também estava no carro.
- Você estava dirigindo?
- Pior, você.
- Eu não sei dirigir.
- Deve ter sido por isso que vocês morreram. Eu vi vocês saindo de carro e não falei nada. Devia ter visto como ficou o carro do Antônio. Acho que o pai dele chorou mais pelo prejuízo.
- Léo! Eu estou morto e você pensando num carro importado que não tinha nada demais!
- Desculpe, acho que estou emocionado com a sua presença.
- Não me sinto morto, me sinto tão bem, tão descansado.
- É que a gente escreveu descanse em paz no seu túmulo.
- Tümulo? Eu fui enterrado?
- Você queria que a gente fizesse o que com o que sobrou de você?
- Mas eu estou aqui! Estou inteiro!
- Esse é o seu espírito. Nós fizemos uma sessão para chamar você aqui hoje. Para sua alma encontrar a luz. Você se tocou que não lembra de nada? É porque você está na escuridão. Morreu pecador.
- Até que estava bom assim. Acho que prefiro descansar com a luz apagada.
- Será que nem morto você toma jeito? Hoje você vai poder ser perdoado. Tem um padre na sala.
- E o que é que eu tenho de fazer?
- Coisa besta. Queimar sua camisa do flamengo e vestir uma do Vasco.
- Ficou louco? Nem morto!!
- Acho melhor você não falar assim. Você não sabe o inferno que te espera.
- Posso saber o que a minha camisa do flamengo tem a ver com os meus pecados e a minha entrada no céu?
- Tudo, ora. Você odiou seus irmãos, traiu sua mulher, cometeu as piores atrocidades, tudo em nome de uma vitória ou uma derrota do seu time. Lembra de quando você bateu num cego só porque ele disse que nunca tinha visto um gol bonito do flamengo?
Refleti atordoado, será que meu irmão tinha mesmo razão? Eu estava morto e para ir pro céu precisava mudar de time?
Ele continuou.
- Lembra quando você jogou o cinzeiro de cristal pela janela por causa de um pênalti perdido? Podia ter matado alguém e aquele cinzeiro estava na família da sua mulher há anos. E quando você comemorou uma vitória fazendo xixi no cachorro da vizinha? O coitado ficou traumatizado! E a última! Quando você dispensou a mulher mais gostosa do bairro e saiu cantando abraçado com o outro bêbado flamenguista! Lembra dessa?
- Realmente foi um pecado.- tive que concordar, mas argumentei.
- Tudo bem, você tem razão, fiz coisas horríveis, mas estava levado pela emoção, não foi de propósito.
- Ah, e o que a gente faz quando é culpado por uma coisa aconteceu sem querer?
- Pede perdão.
- Então, é isso. O Padre entende de perdão, não venha você querer ensinar o padre a rezar a missa. Ele disse que você só entra no céu se for com a camisa do Vasco.
- Desgraçado!
- Veja aí, xingar um padre, mais um pecado pra sua lista.
- Mas eu não posso fazer isso, sou flamengo desde que nasci.
- E agora você morreu. Lembra da música: uma vez flamengo, flamengo até morrer...Pronto. Você morreu, já pode virar a casaca.
- Tudo bem, se for pela salvação da minha alma, aquele time não está jogando nada mesmo.
Resignado e pelado fui até a sala. O padre estava lá. Em uma das mãos a minha linda camisa rubro negra, na outra aquele lixo branco e preto.
Ao me ver, ele baixou a cabeça e fez o sinal da cruz. Lembrei-me imediatamente de minha nudez e me escondi atrás do sofá.
- Desculpe, padre, minhas roupas...
- Não se incomode com seu corpo, meu filho. Vamos agora cuidar de sua alma.
Ainda fiz uma última tentativa.
- Padre, estive pensando. Estou realmente arrependido. Aceito queimar minha camisa do flamengo. Eu mereço! Mas será que não dava para usar uma outra que não fosse a do Vasco? Que tal a do São Caetano, hein?
- São Caetano não tem graça.
- Graça?
- É, meu filho, não basta vestir uma camisa com nome de santo, para sua graça ser concedida. Essa graça tem ser com a do Vasco da gama.
- Mas por quê? Por que logo o Vasco?
- Meu filho, os enigmas da vida não terminam com a morte, eles só ficam mais profundos. Portanto, vista essa camisa, queime a sua e não discuta que eu ainda tenho mais 5 almas para salvar hoje.
- Todos flamenguistas?
- Isso não vem ao caso- disse o padre, encerrando o assunto.
Senti as lágrimas queimarem o meu rosto enquanto o fogo queimava a camisa com a qual eu tinha tido as maiores alegrias e tristezas da minha vida. O pano da camisa vascaína era duro, pesado e ainda ficava grande em mim. O Padre perguntou se eu queria me olhar no espelho mas eu disse que não, não queria lembrar do meu corpo desse jeito. Meu irmão assistia a tudo com um leve sorriso, uma vez que sempre fora vascaíno.
Deitei, fechei os olhos e esperei que a luz levasse embora meu espírito junto com a minha vergonha.
Quando enfim minha alma ganhou a eternidade enxerguei tudo: o mundo inteiro, todos os estádios, meu país, minha cidade, minha rua e, finalmente, o padre...sim, o padre. Ele corria pela rua, indo em direção a um botequim. Chegando lá, livrou-se da batina e mostrou a um grupo de bigodudos a camisa alvo e negra que estava por baixo. Juntos, eles cantaram o hino do seu time, a música que eu mais odiava. E foi a última coisa que eu ouvi.