Friday, September 09, 2011

Aquele jogo

Passou pelo porteiro com ar indiferente, o que, por si só, já era diferente, pois sempre se cumprimentavam como amigos de escola. O porteiro achou que era brincadeira:

-Eta, flamengista, perdendo daquele jeito ainda é orgulhoso, é?

-O quê?- Respondeu com o ar mais esnobe desse mundo, como se ele fosse o rei da Inglaterra e o seu Zé fosse o seu Zé mesmo.

- Ô Doutor, o jogo foi feio, mas num precisa ficar assim, quem sabe não é melhor pro flamengo ir logo pra segundona, hahaha?

- Segundona? Flamengo? Eu não entendo o que o senhor está dizendo. Está falando comigo?

Seu Zé finalmente começou a levar o negócio a sério. Será que o doutor Nelson estava tendo alguma coisa?

- O senhor está bem? Tá tudo bem? Olha, esse negócio de futebol é bobagem, o senhor não ta chateado de verdade, né?

- Futebol? O que é futebol?

- Hahahaha, ah, doutor Nelson, vá...- quando ia completar a frase percebeu que a cara do Dr Nelson estava séria, ele parecia realmente não saber o que era futebol ou então fingia melhor que o diabo. Nisso, alguma coisa fez o doutor se mexer.

- Ah, futebol, aquele jogo que existia há muitos anos, ora, seu Zé, o senhor é muito jovem pra lembrar disso, não é?

- Tá de sacanagem...-Seu Zé não se agüentou e ao mesmo tempo percebeu que tinha ido longe demais.

- Veja bem como o senhor fala comigo, senhor Zé, não sei que problemas o senhor anda enfrentando, mas..-Antes de completar a frase, ambos se viram para o síndico, que vem passando pela portaria, vascaíno doente, pelo que seu Zé sabia, finalmente ele tinha pra quem apelar.

- Dr. Cláudio, olha aqui Dr Nelson dizendo que futebol não existe. Num tô dizendo que esses flamenguistas são ruim do juízo.

- Futebol? – Respondeu o Dr. Claudio para o total desespero do Seu Zé, será que os dois tinham combinado aquela sacanagem? Era impossível, um era flamenguista, outro vascaíno e ele mesmo era botafoguense.

- Futebol doutor, aquele jogo que tem gol, lembra, gol do Vasco, do botafogo...

- Vasco? Botafogo? Nossa, Seu Zé, essa o senhor tirou do fundo do baú, esse não era aquele jogo que os caras ficavam correndo atrás de uma bola num gramado verde e os torcedores iam fantasiados e ficavam gritando ou tocando corneta que nem uns malucos? O senhor andou conversando com seu bisavô, foi? Isso não existe mais há séculos.

- Dr Claúdio- agora seu Zé estava decidido- eu não sei o que está acontecendo, mas tô ficando nervoso de verdade. Cês tão de armação, não tão?

- Senhor José – respondeu o síndico, bem sério dessa vez -Por que o senhor não tira o resto do dia de folga? É melhor, porque se o senhor me desrespeitar de novo...

-Desrespeitar? Mas eu só falei de futebol.

- Pode ir, senhor José- Enquanto falava, anotava alguma coisa no bloquinho da portaria e puxava o crachá do porteiro com ar irritado. Aquele não parecia o síndico que Seu Zé conhecia.

Sem opção, ele saiu andando, ainda torcendo pra ouvir umas gargalhadas que confirmassem a brincadeira dos dois, ele nem ficaria ofendido, tudo bem, esses caras...Mas não, parecia sério mesmo.

Então, se futebol não existia, ele não era mais amigo do Dr. Nelson nem do síndico, ele não teria nada pra falar quando um deles passasse pela portaria, ele não ia precisar mais da televisãozinha que a dona Lourdes comprou de presente pra ele assistir aos jogos na copa do mundo na portaria. Nem haveria mais copa do mundo! Não, era impossível, ele não podia estar ficando maluco, o futebol não tinha acabado e só ele não sabia.

Decidiu encher a cara, tava de folga mesmo, ia pra um botequim qualquer e beber até de noite. Resolveu ir pro bar do Arnaldo, flamenguista de chorar, que tinha até imagem de São Judas Tadeu e São Jorge com vela acesa pro flamengo. Não ia falar de futebol, só ia pedir pra pendurar a despesa, o Arnaldo, apesar de flamenguista, era gente boa.

Ao chegar no bar, pensou que ia ter um infarto. Não havia uma bandeira sequer rubro negra, a TV passava um noticiário sobre um terremoto no Japão, o bar parecia mais limpo, não tinha ninguém bêbado no balcão, ou, se tinha, eles disfarçavam bem. O próprio Arnaldo parecia outro, estava barbeado, com uma camisa branca. Branca!!! E passava um pano limpo. Isso mesmo, limpo, no balcão. Tentou ignorar tudo, jogou os braços no balcão e gritou.

- Naldo, desce uma quente e uma gelada pra temperar que hoje tá tudo errado. Ele costumava pedir cachaça com cerveja quando a coisa ia mal.

- Seu Zé, respondeu um Arnaldo saído de um filme americano, não entendi o pedido. E o senhor poderia pagar no caixa antes de consumir?

- Ah, não, pagar no caixa antes de consumir é demais, tu enlouqueceu compadre? Isso aqui é um botequim ou é uma boate gay?

- Senhor José, veio o Arnaldo andando sério, vou ter de pedir para o senhor se retirar. O senhor está ofendendo a clientela.

Nem quis olhar, nem quis saber, que se danasse, ele tinha uma garrafa de caninha em casa e ia beber, a Matilde, sua mulher, que se danasse também. Que danado de dia maluco! Amanhã ia ser outra coisa, enquanto isso, ele ia encher a cara, pronto.

O problema foi que, antes de chegar em casa, deu de cara com a Matilde, ela mesmo, sua esposa há mais de dez anos, num balcão de bar com outras duas mulheres falando de novela. Discutiam, batiam no balcão como se fosse a coisa mais importante do mundo.

- Ela é mãe dele, sim, eles só descobriram agora que fizeram o DNA.

- Não pode ser- respondia outra mulher ensandecida.

Seu Zé até queria ir direto pra casa, mas suas pernas não respondiam, ele ficou parado ali olhando aquela aberração. A tendinha, nem era bar aquilo, só tinha mulher, todas meio bêbadas, inclusive a sua Matilde, falando de novela. Ele não sabia se ria, chorava ou até se já tinha bebido e esquecido. Foi então que a esposa percebeu sua presença.

- Ô Zé, que foi, homem? Perdeu o trabalho, é? Tá fazendo o que em casa a essa hora? Não vai dizer que veio me vigiar aqui no bar? Tu sabe que quarta feira é meu dia de vir pra cá, falar da minha novela com as minhas colega e tomar minhas cerva, tu num vai encrencar comigo justo hoje, vai?

Aquilo foi demais, Seu Zé não agüentou, sem sair do lugar, teve um crise de choro, o mundo todo, inclusive o mundo dele, estava acabando. Matilde se adiantou.

-Peraí, gente boa, que eu vou conversar aqui com o patrão- falou alto dando uma piscadinha pras amigas enquanto se encaminhava na direção do marido e o levava pra longe da visão do bar.

- Que foi, Zé? – disse baixinho.- Tá acontecendo alguma coisa?

- Matilde – respondeu ele, ainda chorando copiosamente- Você sabe que não existe mais futebol?

- Futebol?

Seu Zé quase berrou de tanto chorar diante de mais uma interrogação daquelas.

- Calma, homem, tá variando? Futebol num existe faz tempo, a gente nem era nascido, por que pensar nisso agora?

- As pessoas, Matilde, as pessoas eram meus amigos. Eu tinha o que falar, eu tinha com quem falar, não importava se era rico, pobre, síndico, advogado, médico, dono de botequim, a gente sempre foi uma coisa só, Matilde. A gente sempre foi torcedor e isso acabava com as nossas diferenças. Eu podia conversar com qualquer pessoa de igual pra igual, eu sempre tinha assunto, todo mundo gostava de falar comigo. E agora, vou falar de quê?

- Ora, Zé, hoje em dia só se fala da novela, mas isso não é muito coisa de homem, sabe como é, homem fica mais na sua, só trabalhando, dizendo que mulher só fala bobagem, briga por besteira de novela, na verdade, quando um homem gosta muito de novela acham até que ele é meio gay, mas se você quiser eu te conto todos os capítulos dessa novela de agora das nove. Olha, o personagem principal, aquele bonitão...

- Chega- disse Zé, interrompendo a esposa- não quero mais nem beber.

- Ah, que bom, não fica bem prum homem de família ficar bêbado no meio do dia, vai voltar pro trabalho?

- Não, Matilde, tô de folga hoje, vou dormir, pode ficar no seu bar, com suas amigas, falando de novela, eu lembro como era bom quando eu também podia fazer isso, ficar enchendo a cara com meus amigos que não falam mais comigo, discutindo um assunto que não existe mais.

- Não fica assim, Zé, vou pra casa com você, você quer?

- Não, deixa, só quero dormir.

Antes do fim da frase do Seu Zé inconsolável, Matilde já estava de volta ao bar, berrando sobre o capítulo final da novela.

Ele entrou em casa, olhou pra cama que ficava na sala mesmo, se jogou de sapato e tudo e dormiu profundamente o sono dos que já não vêem sentido em permanecer acordado.

Despertou muitas horas depois, o sol estava nascendo, Matilde ressonava ao seu lado.

Esticou a mão para encontrar o copo de água que sempre ficava perto da cama e esbarrou numa camisa, uma camisa do seu time, suada ou molhada, velha não era.
Olhou para as paredes e viu a pequena bandeira botafoguense em cima da TV.

Segurou a camisa e, virando pro lado, decidiu dormir de novo, sonho ou realidade, não importava mais, o que ele queria era ir pra um mundo onde o futebol não tivesse acabado.

Gisela Cesario.